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  • Foto do escritorArmazém na Estrada

Velho idiota

um conto por Débora Lima


A velhice é um estado de repouso e de liberdade

no que respeita aos sentidos. Quando a violência das paixões

se relaxa e o seu ardor arrefece, ficamos libertos de

uma multidão de furiosos tiranos.

Platão

Costumávamos acreditar que o tempo se encarregaria de curar tudo. Costumávamos acreditar que seria o bastante esperar um pouco e tudo se tornaria como a poeira que se espalha no vento: imemorável, invisível.

Então, desperdiçamos os melhores anos de nossa vida um ao lado do outro, sim, mas um a léguas de distância do outro. Dormíamos na mesma cama, mas não habitávamos o mesmo espaço. Nada havia em comum entre nós, senão o entendimento de que aquilo tudo era pelas crianças, para que se sentissem seguras, para que crescessem num lar “estável”. Infelizmente, quando percebemos que não nos entendíamos bem, já tínhamos nossos filhos.

As crianças cresceram, fizeram faculdade, foram para suas próprias casas. Pensávamos que gozaríamos da sensação de dever cumprido e, quem sabe, passaríamos a pensar acerca de nós dois, de nossa paixão talvez arrefecida, talvez jamais realmente existente. Ponderamos se valeria a pena tentar revisitar o lugar de onde nos perdemos um do outro, se é que algum dia estivemos na mesma estrada, para, quem sabe, alcançarmos ou voltarmos a um caminho em comum.

Mas, esse momento de largar o fardo, simplesmente, não chegou, nunca aconteceu para nós, nenhuma ocasião se fez propícia, nenhuma circunstância se fez favorável. Seguimos unindo as fracas forças para ajudar nossos filhos e quando nasceu nosso primeiro neto, sem qualquer palavra, fizemos um acordo e resolvemos adiar nossa conversa e o retorno à vida, se é que algum dia estivemos nela. Seguimos ali, na mesma casa antiga, vivendo em mundos completamente diferentes.

Cumpríamos nossos deveres, eu acordava sempre cedo, preparava-lhe o café coado, uma broa de milho e o servia, religiosamente, com um pedaço de queijo curado. Aquele café era como incenso ofertado a um deus que não era amado, mas que inspirava um temor, um temor que coagia àquele serviço que não era pesado, doloroso ou opressor, era apenas metódico e, às vezes, irritante. Era algo que se esperava impreterivelmente de mim, mesmo nos dias em que todo o desejo do meu corpo era habitar a cama por mais alguns minutos, mais algumas horas, mais algumas eras. Esses ajustes necessários para que as pessoas convivam, ainda que não passem de um broa de milho, são o símbolo inexorável da inexistência da liberdade, do império da servidão.

Não somos livres, senão para seguir as regras, isso é fato. E quem as infringir, que suporte o fardo do caos. Eu até queria me desvencilhar da teia da minha existência, mas não por meio de uma grande instabilidade, fui condicionada demais e não seria capaz de promover uma pequena revolução sem me cortar inteiramente. Eis o porquê de tantos adiamentos.

Ele, por outro lado, comprava meus comprimidos para artrite, hipertensão e insônia, meus colírios para glaucoma, minhas pomadas contra dermatite. Às vezes sentávamos na varanda à noite e falávamos acerca dos netinhos. Eu quase sentia uma suave sensação de comunhão, mas, mal ela me tocava o pensamento, como um beijo suave, logo ia embora, quando ele começava a se queixar do meu jeito de falar acerca de nossa vida para estranhos, do meu jeito de vestir, do meu hábito de deixar os pratos lavados sobre o balcão da cozinha...

Seria leviano negar que pagávamos certa benevolência um ao outro. Quem dera benevolência fosse o bastante.

Além do mais, as pessoas têm esse hábito de pensar que os homens são estimulados visualmente, e são. E, por isso, são, muitas vezes, incontinentes quanto aos desejos dos sentidos. Mas, as pessoas ainda resistem a aceitar que as mulheres desejem tanto ou mais que certos homens. Desejam, viu? E também cobiçam àquilo que veem, e mesmo assim, como eu, depois dos sessenta. Mas, o que não é novidade, é que o que envolve a mulher, inspirando certas vontades, vai muito além do corpo. O que é doloroso aceitar é que uma mulher cujo aspecto não seja de todo “apetecível” para os padrões da mídia, também sinta ferozes vontades que só em seu corpo se possam exaurir.

Claro, quando eu era jovem também desejava, mas a vergonha e o medo tolhiam a minha entrega, mas não era só pela minha educação, pela carga moral que eu recebi na minha infância, era pelo olhar dele, aquele olhar que parecia me desafiar... Mas, ao mesmo tempo, quando eu atendia os apelos mais ousados do meu corpo, ele tornava a me olhar e, então, me desprezava, como se me condenasse por aquele pequeno ato que fora praticado em favor de nós dois.

Mas esse hábito de se deleitar em minhas ações para depois me reprimir, não se restringia à cama.

Por exemplo, eu sempre trabalhei, assim como ele. Não era preciso dizer qualquer coisa quanto a isso, existia o acordo silencioso de que faríamos tudo pelos nossos filhos. Embora eu não acreditasse que uma mulher tivesse o dever de trabalhar, não só por uma questão de imposição de sua vontade, por uma guerra sexista... Eu acreditava que uma pessoa, qualquer que fosse o seu sexo, deveria se esforçar para fazer o melhor pelo seu lar. E a necessidade nos impunha o dever. A realidade sempre dissolve ideologias tolas.

O que me lacerava eram os momentos em que, depois de eu pagar carro, cartão, escola das crianças com o dinheiro oriundo do meu trabalho, enquanto aguardava, quem sabe, um olhar complacente, um gesto de parceria e reconhecimento, sempre ouvia que, em razão de eu estar trabalhando muito, meus filhos estavam crescendo sem minha presença, sem minha assistência. Como se eu tivesse escolha, como se nós, que mal conseguíamos pagar nossas contas, pudéssemos preterir do meu trabalho.

Ah, sou feliz que existam mulheres no mundo que não sintam medo de serem largadas por seus companheiros e maridos, os quais reconhecem a importância do apoio de suas mulheres para que possam alcançar sucesso profissional. Sinto-me triste por saber que, ao que parece, são poucas. Eu gostaria de ter tido esse privilégio, não para simplesmente ficar sem fazer qualquer coisa útil, mas, por que eu poderia, quem sabe, aprender idiomas e ensiná-los aos meus filhos, pintar, escrever livros. Quem sabe, em outras circunstâncias, em outro mundo.

Eu não podia negar que não passava o tempo que gostaria com meus filhos, pois sabia que eles, que não pediram para nascer, mas eram fruto da minha vontade egoísta ou, quem sabe, da minha alienação, (pois eu ainda acreditava na importância da família para uma experiência de unidade e até para uma contribuição social efetiva e talvez isso seja loucura num mundo tomado pelo mal) precisavam de mim... O engraçado é que, há quase quarenta anos, quando me casei, pensei que jamais estaria sozinha. Ledo engano, eu nunca me senti tão só em toda minha existência, como em todos esses maravilhosos anos de vida conjugal.

Não sei se todos os casais são assim, não sei se só nós não conseguimos acertar os ponteiros. Nunca nos agredimos fisicamente. Nunca deixamos de nos ferir por dentro. Nunca nos odiamos a ponto de desejar o mal um do outro. Mas, quantas e quantas vezes fomos indiferentes à dor um do outro...

Eu fico pensando se não teríamos sido mais felizes se nunca tivéssemos cruzado aquela rua em que nos vimos pela primeira vez: eu com o uniforme da escola; ele, sobre uma bicicleta velha. Não tínhamos nada, mas acreditamos que seríamos felizes.

O pior é não saber, pois, às vezes penso que só por não ter tido câncer, tampouco ter apanhado ou sido traída, já devo me considerar feliz. Mas, honestamente, eu simplesmente não sinto que sou, ou jamais tenha sido, e sei do meu direito de não precisar sê-lo. O doloroso é pensar que poderia ter sido. E o mais doloroso ainda é também não saber se conseguiria ter sido, se adiantaria alguma coisa, caso tivesse mudado o rumo da minha vida.

À parte isso, mesmo depois de ter parido três filhos, sinto que vou morrer virgem, simplesmente pelo fato de que o ato nunca me desmontou, me refez ou me elevou a um estado diferenciado de consciência, como eu esperava.

Eu também sei que vive-se até sem qualquer troca idílica, eu sei, tenho até uma prima que é freira, coitada, mas, o que me aborrece é que eu ainda sinto falta de algo que nunca descobri o que é. E o que me entristece é que não sei se ainda tenho tempo de ir em busca, nem onde procurar. Acho que deixei a oportunidade escapar, sem ter sido capaz de identificá-la.

Fui ensinada a amar a continuidade das coisas, a preservá-las, e sempre tentei ver os defeitos dele como um caminho para o meu aprimoramento espiritual. Ah, quantas vezes fechei os olhos e, mesmo cansada, eu o servia dizendo para mim mesma: Faço para Deus, sim, faço para Deus...

O que me constrange é pensar que tudo que fazemos com esforço sobrenatural é recebido com a naturalidade de algo totalmente banal. Às vezes, uma broa de milho é algo banal, às vezes, é dor e sacrifício...

Meus filhos costumam dizer que quando fico sozinha no finzinho da tarde olhando a janela, estou, como toda velha, pensando em Deus, buscando sabedoria ou sentindo saudade. Ah, se eles soubessem! Quando eu olho pela janela eu vejo as campinas ao longe e fico pensando é em fugir, ir correr mundo, conhecer gente nova, acordar para não fazer nada e dormir com a barriga cheia de Valium e cerveja. Mas, deixo-os com suas ilusões, pois ainda não aprenderam a sofrer suas próprias dores.

Contudo, o que me deixa embasbacada mesmo, ainda é esse velho, que não aceita me perder, ainda que sinta que sou a causa de tudo que vai mal em sua vida. É uma merda mesmo: está velho e acostumado como um bode velho... Você acredita que hoje pela manhã ele tropeçou numa roupa no chão que se enganchou na porta do quarto? Chamou um palavrão, porque caiu e bateu com a boca mole no chão e, claro, me culpou por haver jogado aquela roupa lá.

O engraçado é que, ao acender a luz, viu que era a roupa dele, roupa que ele tirara e jogara ali, displicente, ao invés de levá-la para o cesto de roupas sujas...

Eu fiquei em silêncio enquanto ele me xingava, nem quis gastar energia para me defender. Mas, quando ele viu que a culpa era dele e não teve nem mesmo a decência de me pedir desculpa, perdi o estoicismo e gritei: “Bem feito, velho idiota!”

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Débora Lima é poeta e escritora.


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