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Sobre três mitos acerca da República brasileira e a quem ela serve

um ensaio por Moisés Morais


Recorte da obra "Juramento constitucional", óleo de Aurélio de Figueiredo (Museu da República, Rio de Janeiro). Obra representa a posse do Marechal Deodoro da Fonseca como presidente Fonte: Agência Senado

A República corresponde a uma forma de governo que na história contemporânea foi evocada como alternativa às monarquias vigentes. A Revolução Francesa se constituiu como um marco importante nesse processo, pois se tornou referência para movimentos que foram responsáveis por varrer do mapa sistemas políticos absolutistas (HOBSBAWN, 2007).

No Brasil, a proclamação da República se efetivou alicerçada na promessa de que, diferente da monarquia, haveria de ter democracia, cidadania e separação dos poderes do Estado. Nenhuma dessas promessas se cumpriu. Pelo contrário, somente ingênuos ou oportunistas podem asseverar que tais coisas não passam de um embuste em nosso país.


Democracia


A República foi proclamada através de um golpe de Estado e outros deste se sucederam ao longo dos 133 anos desse regime no Brasil, conduzindo grupos políticos ao poder sem que fosse através da expressão da vontade popular. Ademais, o Estado republicano sempre reagiu com uma violência implacável para erradicar mobilizações que ameaçassem a manutenção do status quo. A guerra de Canudos é um caso representativo dessa dinâmica, mas não é o único, se reconhecemos também as violações massiva e sistemática aos direitos humanos cometidas durante a Ditadura do Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985) (BRASIL, 2014).

Desde a instituição da República, a participação politica das camadas pobres da população sempre encontrou severos obstáculos. Atualmente, apesar da expansão do direito de voto estamos longe de dispor de uma democracia de fato. Não decidimos quais serão as ações que serão tomadas pelo Estado, escolhemos apenas aqueles que irão decidir por nós.

Se isso não bastasse, o direito de votar, esse limitado recurso para participação que tem lugar em uma democracia representativa, tem sido corriqueiramente ameaçado. A reivindicação de intervenção militar e reinstitucionalização do AI-5 têm constado na agenda política de grupos que se constituem como base política do atual Presidente da República.

Cabe lembrar que com o fim da ditadura militar no Brasil não se excluiu por completo instrumentos autoritários presentes na legislação e na prática cotidiana de forças policiais e de setores do aparelho estatal. Para Jorge Zaverucha (2010), a última Constituição, promulgada em 1988, embora tenha avançado na garantia de direitos, mantém elementos da Constituição de 1967 e da sua emenda de 1969, cuja aprovação ocorreu quando estava vigente uma ditadura militar. Resultam dessa questão evidentes empecilhos para que possamos desfrutar de uma efetiva democracia no país.


Cidadania


Como pondera o cientista politico indiano Partha Chaterjee (2004), o Estado nas sociedades contemporâneas fundamenta as bases da sua legitimação através da ideia de soberania popular e universalização da cidadania, pois até mesmo regimes autoritários e ditaduras militares sustentam o discurso que governam para atender a esses princípios.

Porém, o discurso de que todos os seres humanos são portadores de direitos não se efetiva na realidade. A contradição gerada nessa conjuntura contribui para deflagrar a ação coletiva que reivindica a institucionalização de direitos. Na década de 1980 com o fim da ditadura militar e vigência do direito de organização se assistiu a ampliação de mobilizações na sociedade com esse horizonte de expectativa. Essa processo contribuiu para a inclusão de direitos na Constituição de 1988, mas foi insuficiente para universalizar a cidadania no Brasil (CARVALHO, 2004).

Muitos direitos permaneceram apenas como um registro no papel, sem que se efetivassem na vida prática. Outros tantos têm sido sistematicamente retirados da Constituição ao longo do tempo. Recentemente, as reformas trabalhista e previdenciária são exemplos dessa dinâmica que atua na redução de uma cidadania que já era restrita para a população empobrecida (BEBILACQUA 2018; LEVI, 2019).


Separação dos poderes do Estado


A ideia de tripartição dos poderes do Estado em Executivo, Legislativo e Judiciário tem uma sistematização a partir de Montesquieu (1996) que se notabilizou através do seu livro “O espírito das leis”. Um princípio central nessa proposição é o de evitar a concentração do poder tal como acontecia nas monarquias absolutistas. Para isso, Montesquieu tomou como referência o modelo de organização política existente na Inglaterra, em que o rei compartilhava competências com o parlamento.

Montesquieu não viveu para testemunhar a generalização da institucionalização de governos republicanos, os quais, na prática, estiveram longe de confirmar o que esse pensador francês defendia, vide o caso brasileiro. Ou seja, que um equilíbrio natural iria se compor fruto da autonomia e da mútua vigilância desenvolvida entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Tal premissa, no entanto, vigora muito mais como argumento ideológico para legitimar a manutenção do atual modelo político, pois a experiência republicana brasileira é pródiga em demonstrar que essa separação dos poderes não se confirma na prática. Atualmente, a distribuição de vultuosas emendas parlamentares é um dos exemplos eloquentes das relações promíscuas que são mantidas entre o Executivo e o Legislativo, de modo que a separação dos poderes se trata de algo meramente formal.


A República está a serviço de quem?


O áudio do banqueiro André Esteves publicado na imprensa brasileira fala por si sobre a quem serve a República no Brasil. Fica evidente a subordinação aos interesses do mercado financeiro por parte de diversas instituições que formam o Estado Brasileiro.

Inclinação semelhante nunca se viu quando se trata de atender reclames da população empobrecida. Pelo contrário, o que a história demonstra é a mão pesada do Estado sendo acionada, quando se trata de reprimir lutas sociais que emergiram contra a desigualdades injustas existente no país.

O que é possível constatar é que o Estado republicano no Brasil sempre fez valer a sua vantagem favorecida pela concentração dos meios de coerção, os quais sempre foram mobilizados com presteza para manter as estruturas de exploração e dominação.

Diante dessa condição, reproduziu-se ao longo do tempo relações de desigualdade de poder que tem conduzido grupos subalternos, em busca de alcançar o atendimento das suas demandas, a estabelecerem relações de negociação e colaboração com setores dominantes. Logo, movimentos disruptivos protagonizados pela população empobrecida é algo improvável de acontecer. A ação política se dá essencialmente no terreno da negociação com a finalidade de alcançar o atendimento de demandas imediatas. Há um reconhecimento das desigualdades de poder e a percepção da violência que o Estado é capaz de praticar contra quem se insubordina.


Moisés Morais é Historiador e Professor.

Mestre em História pela UNEB.



Referências bibliográficas


BEVILAQUA, Vinicius Foletto. Entre direitos e redução de custos trabalhistas: a reforma trabalhista justificada pelos representantes empresariais. In: Século XXI, Revista de Ciências Sociais, Santa Maria (RS), v.8, Ed. Esp., p.1051-1084, 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/seculoxxi/article/view/37538>. Acesso em 20 set. 2021.


CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.


CHATTERJEE, Partha. Colonialismo, modernidade e política. Salvador: EDUFBA – CEAO, 2004.


HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. Europa, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.


LEVI, Maria Luiza. A Reforma da Previdência e o Fim da Seguridade Social. In: Revista Ciência do Trabalho, São Paulo, n.14, p. jun. 2019. Disponível em <https://rct.dieese.org.br/index.php/rct/article/view/209/pdf >. Acesso em 23 set 2021.


MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


TILLY, Charles. Coerção, Capital e Estados Europeus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.


ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: O legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson & SAFATLE, Vladimir (Org). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.





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