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  • Foto do escritorArmazém na Estrada

Os olhos do eremita

Atualizado: 12 de mar. de 2021

por Lodônio de Poiri

(ou A Lenda das Curas)


Ininterruptas;

soberanas foram as chuvas.

Quando sol e lua

retornaram aos olhos,

soou a trombeta na montanha.

Os povoados do vale,

como filhotes ao ninho,

assolados foram, de súbito,

pelo desejo em romper

o isolamento.

Ainda havia o medo.

Ainda rondavam aflições.

Ainda ardia a dúvida.

Ainda ruminavam ânsias.

Entretanto, a trombeta soou na montanha.

Enquanto nos povoados,

receosas eram as portas...

Na chácara do sopé,

romaria de animais

foi contemplar o cume.

Aflita ficou a única humana.

Todos sabiam da trombeta.

Todos lembravam das décadas.

Todos sabiam das pestes antigas.

Todos lembravam do eremita.

Quando a história virou lenda,

gerações produziram arte.

Mas ninguém ousaria

supor a descida.

"Se a trombeta soou,

o eremita fora encontrado morto."

"Se ele próprio fez soar,

quão relevante motivo!?"

Na ausência de corpos,

flamejavam perguntas nos infectos vilarejos.

Na romaria, da aflita ecoa

voz que vislumbra

o eremita descer a montanha:

Por quê? Se as flores seguem murchas.

Para quê? Se os frutos seguem pecos.

As dores não surpreendem a mata.

São águas apodrecidas entre festas;

São adubos forjados em mortes.

Por que abandonaste a montanha?

"O relógio nunca para.

Mesmo no cume. Nem sei

se o relógio existe,

se as dores persistem,

se o vírus resiste,

que os ventos hesitem,

ah… sensação incômoda

de transformação: bebi

todas as frações do tempo

e almejo um milésimo de segundo…

para ficar bem.

Seguem valiosas todas as cirandas,

e os jogos e as celebrações,

e os lares e as orações,

e os trabalhos e as privações,

e toda plêiade de criações.

Porém,

condenada seja minha heresia,

nem sempre há motivos históricos,

nem sempre há objetivos ecológicos,

nem sempre uma fagulha divina

brindará nossos passos:

no cume os olhos são vãos,

mais valia uma cegueira;

Quão leviano seja,

o eremita desce a montanha

apenas

para te ver! "



Lodônio de Poiri é poeta e escritor. Um epicurista anarquista e vice-versa



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