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  • Foto do escritorArmazém na Estrada

O Carná Junino

Atualizado: 25 de abr. de 2021

por Luis Flávio Godinho


Esse texto foi construído durante a vivência do autor no São João da cidade de Amargosa durante o ano de 2007. O articulista estava à época interessado nas fronteiras entre as discussões de Marc Augé sobre não lugares, lugares e entrelugares. Em uma perspectiva de observação sistemática da festa, desvela as estratificações, alguns sentidos culturais e processos de homogeneização cultural.


Nos últimos três anos tenho refletido sobre os sentidos atribuídos às festas de São João do interior da Bahia, pelo menos das mais conhecidas. Longe de continuar a achar - e não sou saudosista e muito menos desconheço que as tradições são reinventadas continuamente - que as coisas não mudam! -  Esta festa dos últimos tempos está há milhas de distância das motivações originárias: o sentido religioso e agrícola, uma vez que esta  vem continuamente se transformando num carnaval fora de época, onde a transgressão é a tônica. Eu não estou

sendo patrocinado pela água com quinino, pelo amor de deus!


Do ponto de vista do patrocínio, as indústrias de bebidas se apoderaram do clima junino, por isso é mais fácil achar uma latinha da Skol, Sol, Bavária ou Brahma do que um quentão !. Amendoim? Milho? Canjica? Sai pra lá seu jeca! pois a cidade é nossa e São João não

passará aqui, porque alugamos a casa do nativo! Irão dizer os bandos urbanóides que se avolumam nessa volta ao rural disfarçada de tapeação de saída, vide que o urbano não só se apropriou do rural como o pasteurizou e colocou para vender em larga escala! Quer um conselho? Vá a uma e irá em todas estas festas!

As letras de músicas das bandas de “forró” não nos deixa mentir: “Senta que é de menta”, obviamente patrocinada por alguma marca de camisinha, “beber, cair e levantar”, por alguma de bebida. Quando acreditei que o discurso sempre seria abstrato e generalista, chega “Red Label ou Ice”. E na repetição do Ice, Ice, Ice, uma clara conotação do gozo carnal! Freud explica!


Defendo que o milho virou carne, carna, carnaval. Não é por outro motivo que o símbolo alimentício desse carnaval modificado e meeiro é o velho churrasquinho de gato dos estádios de futebol. Uma pergunta: alguém já viu um gato durante festa de são joão? Existem outros estrangeirismos: crepe e hot dog também imperam! É a ilusão do urbano

se rendendo ao rural! Não vê o rural que o urbano o engaiolou numa lógica mercantil e ditada de fora?!


E as influências são diversas, todas com conotação libidinosa. Vamos aos nomes das festas? Também trazem os significados da carne: “Tico mia”, Forró do Bosque ou do Box, segundo Zé Eduardo, do sensacionalista Se lica Bocão!, Piu-Piu (fazendo alusão ao Bráulio

roxo), Maria Bunita (com bu de bú e outdoor com mulher brejeira e com mini saia provocante...). Programação? Banda de Forró que já tenha divulgado seus sons em DVD's patrocinados pela indústria fonográfica. Pude ver a frieza com que Osvaldinho do Acordeon foi recebido numa dessas praças da “alegria” há muito pouco tempo! "Mas fazer o quê?" dirão os críticos culturais, se a festa é pro povo, como o céu é do condor!? E não  exista político que não queira estar com ou junto com ele, o povo?! Quer um conselho? Eduque as "massas", não as do Pedaço Paulista, mas as submetidas ao monoculturalismo! Escravizadas, que estão, pela mídia e música de massa tocada em todas as festas do "interior".


Os sujeitos? De variados tipos e matrizes: tem o jovem picolé urbanóide, em forme de sorvete – forte da cintura para cima e fraco da cintura para baixo, sendo seu principal objeto de desejo transar, comer, fazer amor, sei lá o quê, com alguma menina urbanóide que freqüente as festas “light” do circuito, repletas de “gente bonita”, massificada e parecida nos gostos e aparências. Eles geralmente usam a blusa da festa, sem manga, mesmo com a temperatura noturna beirando os 18 graus, que para a Bahia é deveras frio! Adoram o consumo conspícuo e o ócio descarado alimentado por doses de uísque red label com ice, camisinha de menta, cerveja da patrocinadora da festa, mulheres, motos e carrões com equipamento de som muitas vezes mais caros do que os próprios autos. Seu símbolo de intercâmbio é o cartão visa electron! Vi um - desses caras - chegar para uma feijoada em uma barraca de madeira da feira local e perguntar se o lugar aceitava débito em conta! E o

símbolo de prestígio? A camisa de alguma festa paga que vale quase o valor médio mensal do salário pago à maioria dos trabalhadores do comércio local.


Outros tipos sociais são facilmente reconhecíveis: nativos de classe média e desfavorecidos. Aqueles criam espaços simbólicos de diversão com uma espécie de delimitação anti-desfavorecidos, estes ficam a contemplar a festa na frente dos palcos, lugar de tensão e confusão! Tem os comerciantes ávidos pelo lucro e pelo bolso dos estrangeiros. Comi durante a festa por 8 reais, mas vi na mesa ao lado, o ex-morador rural urbanizado da capitá pagar 12 reais pelo mesmo prato, com um pedido de cumplicidade feito à mim. Tem as meninas periguetes sonhadoras. As patricinhas locais. E o mais previsível dos nativos: o garoto da periferia -em sua maioria de tez negra - ávido por arranjar uma moça de camisa cor violeta, portada pelas rainhas da distinção social, uma vez que,  entre os da elitizada festa do Piu-Piu, são a La creme de La creme, a nata da nata. Outro símbolo da distinção social desejado pela elite local é estar nos camarotes importados da Sapucaí e do carnaval de salvador. Um deles, patrocinado por uma Loja de Pizzas instalada no circuito, que faz a alegria dos que vão ao outro mundo sem sair do seu! Mas eu queria comer beijú de manteiga, ah como queria!


Nesse caldeirão social todos são aparentemente misturados, mas guardam suas diferenças e pertencimentos cotidianos. A ida ao interior é aparentemente a quebra do cotidiano, mas na verdade o reforça! Estar nessa festa me fez lembrar de uma letra de música do Lampirônicos: “Quem é do interior vai buscar o interior, quem é da capital vai buscar o capital”. Eu emendaria: ou a capital?



Luis Flávio Godinho é Professor. Doutor em Sociologia.

Autor dos livros 'Laços frágeis e identidades fragmentadas'

e 'Sentidos do Trabalho Docente'.

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