por Sandro Santana
1. Introdução
A influência do cinema é uma influência do cinema americano, devido à agressiva importância da difusão mundial da cultura americana [...]. Utilizando habitualmente os personagens-chaves do romance e do teatro do século passado, o cinema americano criou heróis que correspondem a sua visão violenta e ‘humanitária’ do ‘mundo do progresso’.
Glauber Rocha (como
citado em Hennebelle, 1978, p. 215).
Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-45) e o fechamento do mercado europeu, a indústria cinematográfica americana se voltou para o mercado latino-americano. O que gerou a confluência de interesses de Hollywood e do governo Roosevelt, representante das camadas mais agressivas do imperialismo norte-americano, que naquele momento inaugurou a Política de Boa Vizinhança, utilizando o pan-americanismo como principal argumento para a aproximação subordinada da América Latina com os Estados Unidos. Na verdade, o pan-americanismo é uma sequência da política intervencionista norte-americana na América Latina iniciada no fim do século XIX com a Doutrina Monroe: “América para os Americanos”.
Para garantir a solidariedade dos governos latino-americanos diante da “ameaça nazifascista”, ao mesmo tempo em que conquista uma importante reserva de mercado para os seus produtos, num momento em que a Europa se encontra em guerra, foi criado em agosto de 1940 o Office of Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA). Uma agência, com sede no Rio de Janeiro, dirigida pelo gigante do capitalismo americano Nelson Rockefeller, cuja missão era intermediar e assegurar a invasão e supremacia dos produtos norte-americanos, não só no território, mas também no imaginário latino-americano. No Brasil foram priorizadas três metas de ações: informação, saúde e alimentação. Esses setores tinham estruturas definidas de persuasão ideológica e disseminação através do controle dos meios de comunicação, investimento nos canais de publicidade e funções assistencialistas nas áreas de saúde e educação.
Paralelamente, o OCIAA, através de acordos com instituições culturais norte-americanas, como o Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA), também sob a direção de Rockefeller, passa a fomentar o intercâmbio cultural através de diferentes modalidades de incentivo, tais como: bolsas de estudo para artistas latino-americanos irem aos Estados Unidos, exposições arqueológicas, de pintura moderna, de arquitetura, além dos festivais de música latino-americana, todos realizados dentro do MOMA. O OCIAA atuava nas áreas de comunicações, relações culturais, saúde, comércio e finanças, sendo que a imprensa escrita, o rádio e o cinema estavam atrelados ao setor de comunicação. Com os incentivos proporcionados pelo escritório foram produzidos filmes sob a fórmula onde se encontravam os aspectos de uma América do Norte civilizada e apolínea e os estereótipos do latino-americano dionisíaco, dentro de uma perspectiva, como explica Anibal Quijano (2005, p.232), onde a racionalidade e a modernidade são atributos exclusivos do Ocidente e codificadas em um novo jogo de categorias: oriente/ ocidente, primitivo/ civilizado, mágico/ mítico-científico, irracional/ racional, tradicional/ moderno. Estas binaridades emergem na tela de forma grotesca, com latinos tendo suas subjetividades mutiladas e sendo representados desastradamente: “muchachas baianas” dançado samba, ritmo que é constantemente confundido com a rumba e a salsa; Buenos Aires se torna a capital do Brasil, fazendeiros brasileiros falam com sotaque espanhol e chamam suas propriedades de “haciendas”, como no filme “Meu amor brasileiro” (1953), de Mervin LeRoy.
A interpenetração desses dois mundos, o americano que representa a disciplina, o controle, a relação puritana com o mundo do trabalho, a estética eugênica, o nacionalismo e a familiaridade com as vantagens do mundo moderno, “complementam” o atraso tecnológico, o comportamento estabanado, lascivo e indolente que caracterizam os personagens latino-americanos. Esta transformação de diferença cultural em valores e hierarquias, que Walter Mignolo (2003) chama de “diferença colonial” não só estabelece uma missão civilizadora para o homem branco ocidental, como também estabelece o racismo epistêmico (Maldonado-Torres, 2008, p.79), que evita reconhecer os “outros”, os diferentes, como seres inteiramente humanos e que, incontornavelmente, terão suas funções e performances determinadas pela cor da sua pele e pela geografia de onde nasceu. A Política da Boa Vizinhança de Roosevelt apropria-se destas imagens, trabalhando com estereótipos negativos de latino-americanidade, em nome da presença civilizatória e da supremacia dos Estados Unidos na região, evidenciando determinadas características de forma depreciativa, objetivando contrastá-las ao american way of life, veiculado pelo cinema como sinônimo de modernidade. A OCCIA, através do cinema de Hollywood, renova o discurso colonial apresentando “o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (Bhabha, 2005, p. 111).
De formas diversas, o pan-americanismo hollywoodiano expressa e transforma as diferenças e oposições em mera complementaridade: em seus filmes invariavelmente surge uma América Latina com os cenários naturais, o mestiço selvagem e a fêmea lasciva, e os Estados Unidos com a civilização e o progresso, apontando claramente para a hierarquia geopolítica e o lugar da América Latina nessa integração, onde o sistema colonial é atualizado, não só geograficamente, como também no imaginário do colonizado que passa a medir e perceber os seus valores através de epistemologias e conceitos forjados pelas instituições colonialistas (Santos & Meneses, 2010, p. 112). Mignolo observa que o pensamento fronteiriço e a complementaridade espacial, são determinantes para a compreensão de como foram criadas as classificações epistêmicas, quem as classificou e a quem tais classificações beneficiam: “O pensar fronteiriço é uma maneira de ser e de existir de todos aqueles e aquelas que habitam o border, ‘/’, na fronteira que separa e une colonialidade e modernidade” (Mignolo, 2013, p.
24). Maldonado (2008) atenta para o “esquecimento da colonialidade”, o desprezo pela importância da localização geopolítica, da noção de espacialidade no pensamento filosófico ocidental, em detrimento de uma suposto pensamento universal, que, por um lado legitima a exploração de terras e do trabalho, e , por outro, hierarquiza e determina o lugar e o comportamento dos indivíduos a partir da raça e do espaço físico onde nasceu. O “esquecimento dos condenados” faz parte integrante da verdadeira doença do Ocidente, uma doença comparável a um estado de amnésia que por sua vez leva ao homicídio, à destruição e à vontade epistémica de poder – mantendo sempre uma boa consciência. A oposição à modernidade/racismo tem de saber lidar com esta amnésia e com a invisibilidade dos condenados (Maldonado-Torres, 2008, p. 97).
2. Metodologia
A metodologia deste estudo é qualitativa, que emprega fundamentalmente a pesquisa documental e a interlocução com estudos sobre o tema central da pesquisa e biografias de Carmen Miranda, além de emprender uma análise crítica da filmografia e das letras das músicas interpretadas por Carmen Miranda citadas neste artigo. As discussões teóricas tomaram como aporte os conceitos de colonialidade do poder, do saber e do ser, e a geopolítica do conhecimento, presentes no pensamento de Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Nelson Maldonado-Torres, bem como a contribuição de intelectuais pós- coloniais, como Bhabha e Said.
3.1 Boa vizinhança, pra quem?
A política da boa vizinhança encontra no Brasil um momento de intensa intervenção política na cultura. Getúlio Vargas instaura pela primeira vez na história do país um programa de atividades voltado para a cultura popular. Apesar da forte repressão e do clima ditatorial após a Revolução de 30, intelectuais participam diretamente da política cultural do Estado. Com o desenvolvimento tecnológico na indústria fonográfica e, principalmente, na radiodifusão – que permitia a “inclusão” do universo de pessoas não-alfabetizadas, maioria da população – a música torna-se o meio ideal para a disseminação de ideologias nacionais e desenvolvimento de um sentido de coesão territorial. Naquele momento, as ondas do rádio proporcionam um espaço estratégico para a construção de um conceito de identidade nacional que revele a necessidade do país compreender as misturas sociais e raciais complexas dentro dos limites geográficos e nacionais, assim como os relacionamentos desenvolvidos além daqueles limites, em consonância com os interesses do Estado Getulista.
Desde o início da década de 30 que Carmen Miranda fazia sucesso no rádio. Vinda de uma família pobre de imigrantes portugueses, branca e rainha absoluta da chamada “Fase de Ouro” da música brasileira, gravava quase que exclusivamente sambas, marchas e choros. Carmen reunia todas as características sonhadas por Vargas para representar a cultura nacional no exterior. Em 1939, Carmen já havia estreado na Broadway com grande sucesso, após aceitar o convite do produtor americano Lee Schubert, que se encantou com a performance da brasileira no cassino da Urca. Já consagrada com a sua baiana e balangandãs, Carmen assina contrato com a 20th Century Fox, entre os anos de 1941 e 1946. Apesar do sucesso imediato, oito meses após a sua chegada já era apontada como a terceira personalidade mais popular de Nova York e em 1946 se tornaria a mulher mais bem paga dos Estados Unidos, os papéis desempenhados pela Brazilian Bombshell no cinema sempre foram o estereótipo da “fera latino-americana” que precisa ser domada:
Carmen Miranda, na pele das suas Rositas, Doritas, Chitas e Chiquitas da 20th Century Fox, representa exatamente esta América Latina difundida pelo cinema norte-americano. Comporta-se como um animal selvagem, arranhando e/ou mordendo seus parceiros; sua libido é descontrolada, desejando todos os homens do seu convívio. É indolente ou malandra, avessa ao mundo do trabalho, prefere os prazeres da vida (a festa, o riso, a dança, a música). (Saia, 1984, p.41).
Empolgados com o sucesso de Carmen Miranda, outros artistas foram em busca da fama e dos dólares na terra do Tio Sam. Sem o apoio da Política da Boa Vizinhança, alguns deles tentando cantar em inglês, como Dick Farney e Leny Eversong, lançaram-se numa aventura fadada ao fracasso. Dick Farney, pseudônimo de Farnésio Dutra, que chegou a participar de concursos de imitação de Bing Crosby nos Estados Unidos, retorna ao Brasil e adapta com muito sucesso o estilo sussurrante de Crosby ao samba canção. Para o pesquisador José Carlos Tinhorão, esta jazzificação do samba, que teve início com a canção “Copacabana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, interpretada por Farney, “pode ser interpretado como uma nova etapa do processo de alienação que é submetida modernamente a classe média dos países subdesenvolvidos” (Tinhorão, 1997, P. 62). Esta estratégia de subalternização, que Maldonado-Torres (2008) chama de “colonialidade do ser”, se propaga de forma tal que o colonizado acredita na sua posição inferior e busca desesperadamente aproximar-se do modelo colonizador, ainda que saiba que jamais o alcançará, pois o discurso colonizador o desumaniza. O caso de Leny Eversong é emblemático. Leny, que não sabia falar inglês, passava horas a ouvir a mesma música, decorava as palavras e reproduzia o som “como se em estado de transe” (Saia, 1984, p. 9).
3.2. Bananas é o meu negócio!
O sucesso de Carmen não pode ser reduzido aos interesses expansionista da Política da Boa Vizinhança americana e do nacionalismo alienante que se disseminava no Brasil naquele momento. Quando saiu do Brasil, Carmen já era um fenômeno nacional, “Rainha do Rádio” e recordista de vendas, em 10 anos gravara 281 músicas, a maioria sambas e marchas, mas também muitos choros, canções e rumbas e até mesmo tangos. Quando foi contratada por Lee Schubert, na época o mais importante agente do teatro americano, o birô comandado por Nelson Rockfeller não havia ainda sido criado. Por outro lado, Carmen se despediu do Brasil como se estivesse partindo para uma missão. Como nos conta Ruy Castro na biografia sobre a cantora: “Era o samba, ou o próprio Brasil, de turbante e balangandãs, que ia viajar para se impor ‘lá fora’. A palavra ‘missão’ era usada com a maior naturalidade pela imprensa” (Castro, 2005, p. 116).
No entanto, ela sabia que os americanos queriam consumir o exótico e com seus trajes de baiana, seus balangandãs, bananas e abacaxis, conquistou a glória rapidamente. Tanto, que mesmo no auge da sua carreira, quando se tornou a primeira mulher latino-americana a colocar sua marca na calçada da fama, ainda assim, continuou aceitando interpretar a latina maliciosa, alegre e malandra, sempre em papéis coadjuvantes – Carmen nunca protagonizou um filme em Hollywood – e permaneceu cantando canções onomatopeicas. “Causa e efeito do sistema, presa no círculo de interpretação” (Bhabha, 2005, p. 127), Carmen chegou aos Estados Unidos com a missão de “embaixatriz do samba” e pronta para dar aos americanos o que eles queriam: uma visão estereotipada (e inventada) do latino-americano que o torna “ao mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível” (Bhabha, 2005, p. 111).
Este discurso suprime a possibilidade do Outro representar a si próprio e o constrói mentalmente enquanto elemento subordinado e dependente. Neste sentido, a Política da Boa Vizinhança “inventa” uma América Latina de formas similar ao que Edward Said (1990) designou como “o Oriente como invenção do Ocidente”. As potencias imperialistas europeias do século XIX, ao construir um discurso onde o Outro oriental surge como um ser não-confiável, preguiçoso, perigoso, alguém que reúne características com as quais o branco não deseja se ver associado, enfim, inferiorizado de tal forma, que essa dialética negativa foi fundamental para a construção do Ocidente civilizado. Ao construir uma representação inferior e mutilada do oriental, o Ocidente constrói para si próprio uma missão civilizatória e a imagem grandiloquente que faz de si mesmo.
No caso da América Latina a situação ainda foi pior, pois, no Oriente, a Europa ainda reconhecia uma civilização primitiva e um espaço anteriormente habitado; em relação à área geográfica abaixo da linha do Equador, a missão civilizatória do homem branco era acrescida da ocupação de terras “desabitadas”, afinal, seus antigos moradores desconheciam a propriedade privada. Portanto, era uma terra sem dono e um povo “inferior”, a partir da compreensão da raça e do racismo como “o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistema-mundo” (Grosfoguel, 2008, p. 123). Mais de 400 anos depois de Colombo desembarcar na América, o pensamento reproduzido nos filmes de Hollywood mostra que ao sul dos Estados Unidos o mundo é uma mistura de selvas, sombreiros, ditadores sanguinários, homens indolentes e mulheres libidinosas: “a época áurea de baianas de gringo dançando tango na cordilheira dos andes” (Nosso século, 1980, p. 248).
Os filmes que Carmen fez em Hollywood nos mostra uma imagem de complementaridade das duas Américas, em acordo com os interesses expansionistas dos norte-americanos, que “revitalizam” o darwinismo social que surgiu na Inglaterra, no século XIX, “com ideias e explicações, inclusive roupagens científicas, sobre as limitações, extravagâncias e exotismos das populações dos países dependentes e coloniais” (Ianni, 1979, p.33). As sociedades tradicionais da América Latina são mostradas como um grupo onde certos elementos culturais específicos dessas sociedades impedem que elas atinjam níveis de organização no trabalho e realizem “escolhas racionais e moralmente válidas”. Enquanto o par central representa os Estados Unidos como o elemento apolíneo, organizado, moderno, asséptico; à “embaixatriz do samba” cabe o papel dionisíaco, sensual, exótico, atrapalhado e incapaz de seguir adiante sem a direção do “amigo americano”. As personagens de Carmen não são brasileiras, mexicanas ou cubanas, são estereótipos que estavam arraigados de forma una e caricatural à América Latina atrasada e dependente.
4. Conclusões
A expansão imperialista americana no século XX teve em Hollywood um importante “pelotão de artilharia” que abriu brechas não só para produtos, comportamentos, estereótipos, como também para intervenções militares.[1] Seja através da “matriz de clichês”, que justificava as intervenções americanas nos quatro cantos do mundo, ou daquilo que Noam Chomsky chamou de “fábrica de consentimentos”, que faz com que o americano médio tranquilize a sua consciência e acredite “que cabe a ‘nós’ reparar os males do mundo, e ao diabo com as contradições e incoerências” (como citado em Said, 1995, p. 353). A partir da década de 40, após a Segunda Guerra, os Estados Unidos assumem uma posição de hegemonia dentro do bloco capitalista e, como nos diz Otávio Ianni (1979, p.91), para as suas elites “todos os recursos econômicos, políticos, militares e culturais devem ser usados para evitar que os países dependentes se afastam de sua tutela e se desenvolvem segundo alternativas próprias”.
No “século americano”, o capitalismo se expandira e passava da fase de acumulação do capital para a conquista de mercados; os interesses dos Estados Nacionais se confundem com o de empresas multinacionais e, como alertou Matterlart (1976, p.5), “num universo onde não se sabe quem é quem, quem produz a série de televisão e quem fabrica o foguete, é impossível continuar a ignorar as repercussões de uma ‘economia de guerra’ sobre a produção cultural das classes dominantes”. Para os Estados Unidos, durante a Segunda Guerra, mais do que qualquer outra coisa, o que estava em jogo eram mercados e Hollywood sabia disso. A produção de filmes “latinos” foi apenas mais um entre tantos “esforços de guerra”. Astros se alistam no exército, estrelas se apresentam em acampamentos, diretores, técnicos e produtores fazem todo o tipo de material institucional, educativo e de propaganda para a exibição na Europa e na América Latina. Afinal, os grandes estúdios contavam com acionistas com interesses específicos na economia de guerra, como no caso de Howard Hughes, que além de produzir filmes anticomunistas, vendia aviões para a Força Aérea americana, e Nelson
Rockfeller, que dirigia o birô da OCIAA e era o principal acionista da produtora e distribuidora de filmes RKO.
Após a Segunda Guerra o cinema hollywoodiano torna-se o principal difusor do imperialismo cultural norte-americano. Capitais de diversas origens circulam na produção cinematográfica (os chamados conglomerados) e as majors (Paramount, Universal, Columbia, Fox, Warner, United Artists, MGM) atuam de forma organizada através da Motion Pictures Association (MPA). A MPA, empresa que é chamada nos Estados Unidos de "Pequeno Departamento de Estado" e seu presidente tem status de ministro, defende os interesses dos maiores estúdios americanos no resto do mundo. O resultado é que da produção mundial de mais de três mil filmes por ano, Hollywood responde por mais de 80% dos títulos lançados e das receitas auferidas nas bilheterias das salas de cinema no mundo.
Nas últimas décadas, os sistemas econômicos são dominados por empresas transnacionais que afirmam seu poder de fogo através do controle tecnológico e da ocupação do mercado externo; por outro lado, o Estado, cada vez mais abdica do seu papel enquanto organizador e mobilizador do campo cultural, e assume um papel de tímido incentivador de manifestações culturais que não interessam ao mercado e de mero financiador, seja através da renúncia fiscal ou de empréstimos reembolsáveis a juros bem abaixo do mercado, para produções apoiadas por conglomerados midiáticos, que repetem modelos consagrados por Hollywood e pela teledramaturgia. É necessário encararmos os desafios impostos às políticas públicas direcionadas ao campo cultural, sobretudo na América Latina, onde historicamente, como podemos perceber neste artigo, foi um território vislumbrado como mercado a ser ocupado.
Para isso, temos que propor políticas culturais que complementem uma visão da cultura enquanto instrumento provedor das dimensões simbólicas, cidadã e econômica. Que perceba a “economia das culturas”, tomando de empréstimo o termo utilizado por Celso Furtado (2000, p.43), como fomentadoras do desenvolvimento coletivo, e as dimensões simbólica e cidadã, não apenas como salvaguarda de manifestações folclóricas e comercialização de souvenires ou mera oferta de commodities. Ao contrário, que tais dimensões funcionem como instrumentos articuladores das nossas próprias narrativas e estratégias para neutralização de um discurso universalista que inibe a construção de novos modelos narrativos, que não condizem com o suposto universalismo representado pelo imperialismo do cinema norte-americano. Este suposto caráter universal dos filmes hollywoodianos estão de tal forma impregnados em nosso imaginário colonializado que quando vamos ao cinema assistir a um filme nacional, este estrangeiro em seu próprio país, afirmamos que vamos assistir a um “filme brasileiro”, ou mesmo nas finadas locadoras e nas sessões dos sites de vídeo por demanda (VOD), onde os nossos filmes se restringem a uma prateleira “guetificada” com o título “cinema brasileiro”.
Enfim, a análise das relações entre imperialismo e cultura no período da “Política da boa vizinhança” nos ajuda a compreender que, apesar dos processos de descolonização e a desmontagem dos impérios clássicos, a hierarquização e os estereótipos que marcaram as relações entre colonizados e colonizador ainda persistem e o imperialismo, representado sobretudo pela superpotência hegemônica do século XX, os Estados Unidos, continua a ser o traço marcante das relações entre Norte e Sul. Daí a necessidade ideológica de consolidar e justificar a dominação em termos culturais, como tem sido o caso, desde, pelo menos, o século XIX. Mais de 60 anos após a “política da boa vizinhança”, as co-produções com Hollywood são arquitetadas nos escritórios das majors, na península californiana, e a América Latina ainda é vista como manancial para paisagens exóticas, mão de obra barata e atores secundários que, incontornavelmente, representam personagens subalternos e estereotipados, como nos mostra os filmes “Os Mercenários” (2010), de Sylvester Stallone, e “Velozes e furiosos 5” (2011), de Justin Lee, filmados no Brasil .
Sandro Santana é escritor, cineasta e Doutor em Políticas Culturais pela UFBA.
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[1] Segundo Richard Barnet, em As Raízes da Guerra, entre 1945 e 1967 (data em que parou de contar), todo ano houve uma intervenção militar no chamado Terceiro Mundo, sendo que, tais intervenções contam com “todos os elementos de um poderoso credo imperial [...]: um sentido de missão, de necessidade histórica e fervor evangélico” (como citado em SAID, 1995, p.353).
Referências
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Castro, R. (2005) Carmen – uma biografia. São Paulo: Cia. Das Letras..
Furtado, C. (2000). O Capitalismo Global. São Paulo: Paz e Terra.
Grosfogel, R. (2008). “Para descolonizar os estudos de economia politica e os estudos pós- coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global”. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p. 115-147.
Hennebelle, G. (1978). Os Cinemas Nacionais Contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Ianni, O. (1979). Imperialismo e cultura. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.
Maldonado-Torres, N. (2009). “A topologia do ser e a geopolítica do conhecimento: modernidade, império e colonialidade”. Em SANTOS, B. de S. & MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, p. 337-382.
Matterlart, A. (1976). As multinacionais da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Mignolo, W. (2003). Histórias locais/ Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, p. 23-76.
Nosso Século, (1980). Volume 3, 1930/1945 – A Era Vargas, São Paulo: Abril Cultural. Quijano, A. (2005) “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. Em Lander, E. (2005). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO.
Saia, L. H.(1984). Carmen Miranda. São Paulo: Brasiliense.
Said, E. (1990) Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. SP: Cia. das Letras.
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Santos, B. de S. & Meneses, M. P. (org.). (2009). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina.
Tinhorão, J. R. (1997). Música popular – um tema em debate. São Paulo: Editora 34.
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