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Jacinta Passos - Coração Militante

Atualizado: 12 de mar. de 2021

por Luis Flávio Godinho



Li a obra Jacinta Passos - Coração Militante, organizada pela historiadora Janaína Amado (1) com o mesmo afinco com que na adolescência e fase precoce da vida adulta, li Feliz Ano Velho, há 25 anos, e Olga Benário há duas décadas, respectivamente. Obras de apelo popular, ambas retratadas no cinema, mas que possuem a mesma temática do sofrimento familiar, dos acidentes de percurso e sofrimento subjetivo em contextos políticos híbridos: despótico-democráticos!

E digo! Em dramaticidade, a vida desta mulher guerreira, incompreendida pelo sistema social, nada fica a dever.

Li, em um único dia, todos os textos escritos pela autora Janaína Amado. O ponto alto é o texto biográfico-histórico que impressiona por demonstrar a construção da objetividade frente à história, visto que a organizadora é filha de Jacinta Passos, tendo sido apartada de seu convívio desde a tenra adolescência bem como tendo tido uma relação complexa com sua genitora. Acredito que Amado conseguiu, nesta obra, o que Geertz denomina “Tratar o familiar como exótico", no que diz respeito à abordagem historiográfica e aos dados tão subjetivos de que tratou.

Dentre as principais considerações, enumero, por exemplo, a constatação de que Jacinta Passos foi uma mulher muito à frente de seu tempo, os anos de ouro do capitalismo, chamado no Brasil de Anos Dourados, entre 50 e 70.

Esta poetisa viveu muitas identidades: professora de matemática, militante católica, intelectual do PCB, jornalista literária, filha de família de elite de Cruz das Almas, Bahia, a família Passos (2); Jacinta foi jornalista militante do catolicismo social e do PCB, em fases distintas de sua vida, assim como desenvolveu atividade de poetisa, jornalista ligada às artes, analista literária e mãe.

a poetisa acredita que o campo literário precisa dar conta do real, das condições de vida dos homens e mulheres que retrata

Sua obra foi abordada por Chiacchio, Cândido, Lasar Segall, dentre outros ícones da crítica literária nacional e/ou das artes.

Tomo por hipótese que Jacinta Passos foi a Leila Diniz de seu tempo, já que desafiou os valores estabelecidos, ou dito de outro modo, para ser cronologicamente coerente, Leila Diniz foi a Jacinta Passos de sua época.

A história das representações sociais sobre a mulher da Bahia, na primeira metade do século XX, não pode prescindir dessa leitura, bem como estudos que desejem analisar profundamente, aspectos como: crítica às instituições totais de tratamento de saúde mental, o acerto das bandeiras da luta anti-manicomial, os estigmas associados à condição de mulher de vanguarda em um mundo público masculino, tudo isso se desenrolando entre os anos 40 e início de 70.

As passagens pelas internações psiquiátricas são o grande fio condutor da história, na medida em que revelam um espírito incompreendido pelo sistema familiar e social, visto que viveu durante sua curta vida, para os padrões atuais, muito tempo aos “cuidados” terapêuticos baseado em eletrochoques que nada contribuíram para tratá-la ou curá-la.

Exatamente durante suas internações nessas instituições totais viveu sua mais produtiva fase de escritora e literata, pois produziu mais de mil páginas em seus últimos três anos de vida e nos legou poemas como “ Duas Américas”, que já nasceram clássicos.

O ponto forte de sua produção são a poesia "Canção de Partida" e "Duas Américas", poemas distintos, de épocas diferentes de sua vida, mas que anunciam a marca de sua obra: homens e mulheres concretos do meio rural e a poesia de conotação política e socialista, com inspirações revolucionárias.

...relações familiares de sua época, baseadas na lógica: mulher se cria para procriar e casar com homem de posição, enquanto homem para reproduzir e viver dos negócios e da política. Jacinta inverteu as duas lógicas...

Acerca desta questão da concretude da criação literária, Jacinta Passos escreveu uma análise literária, em jornal baiano dos anos 40, que tem ares atualíssimos no debate em uma perspectiva literária marxista: a poetisa acredita que o campo literário precisa dar conta do real, das condições de vida dos homens e mulheres que retrata. Torna-se interessante enfatizar que Antônio Cândido, ao tecer comentários sobre a produção literária de Jacinta, faz uma comparação com a obra de um também iniciante nesta seara à época, o poeta João Cabral de Mello Neto, ambos nordestinos e autores que analisam os homens e mulheres rurais, as contradições sociais e a política.

Jacinta Passos é dona de uma grande veia irônica, não deixando de lado da análise, nem mesmo as relações no bojo de sua família, que expressam muito das relações familiares de sua época, baseadas na lógica: mulher se cria para procriar e casar com homem de posição, enquanto homem para reproduzir e viver dos negócios e da política. Jacinta inverteu as duas lógicas bem como expôs todas as contradições e ambigüidades de seu seio familiar. Ressalte-se seu incrível poema que aborda a ambigüidade de sua posição de classe, se burguesa ou proletária, quando ainda vivia sob influência dos pais!

Este pioneiro estudo deixou flancos abertos para futuros estudos, tais como: análise sobre conflitos entre visões de mundo burguesas e socialistas no seio de uma família rururbana (3), a produção social da loucura feminina, o status social de mulheres que ousam viver a frente de seu tempo, abandono familiar e produção literária, partidos de esquerda e trajetórias sociais, as fronteiras entre ideologia, dogmatismo e tradução subjetiva de valores políticos, etc.

Afirmo que o livro de Janaína Amado, uma bela bio-história de sua genitora foi uma grande conquista literária bem como nos ajuda muito a entender a Bahia e a vida das mulheres rebeldes dos anos 50 do século passado. Recomendo a leitura a todos que se interessam pela relação entre literatura, história e memória de famílias.

Alguns pontos merecem maior aprofundamento: a relação Jacinta e Janaína, a relação de Jacinta-James Amado, Janaína e família materna, bem como família Amado x Família Passos, famílias, respectivamente do cacau e do fumo do interior da Bahia. Investigadas essas relações, poderíamos compreender melhor os não ditos desse intrincado, dramático e potente escrito biográfico e histórico que conecta, ao mesmo tempo a história social das mulheres, a arte e a vida de uma grande poetisa e das famílias rurais baianas do século passado. Por fim, registro meu apreço pela poesia de Jacinta que, abordando “homens e mulheres que não “nasceram com colheres de prata em suas bocas”, contribuiu para revelar um olhar sensível sobre os de baixo, conforme inúmeros poemas que tematizaram empregados domésticos de sua família.


Luis Flávio Godinho é Professor. Doutor em Sociologia.

 

(1) Fui ao lançamento do livro, em fins de julho de 2010, na cidade de Cruz das Almas, Bahia, conheci a organizadora/autora da obra, a Professora titular aposentada de História da UnB, Prof.a Janaína Amado. Até aquele momento não associava a autora desta obra com a Janaína Amado que escreveu em parceria com Ferreira outra obra que já tive nas mãos, o importante livro Usos e abusos da História Oral.

(2) Família que dá nome a tudo naquela cidade e empresta significado a concepções locais de prestígio, poder e posição social: praça central, bairro, ruas, mitos, etc.

(3) Esta questão da família rururbana é uma das questões interessantes que aparecem na trama, demonstrando o que, em outra publicação, denominei "Salvadorcentrismo".

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