por Sandro Santana
No 18 Brumário, Marx dizia que a história se repete uma vez como tragédia, outra como farsa. Às vezes se repete como morte anunciada. É o que está acontecendo com as políticas públicas para o audiovisual no Brasil. Com a chegada do novo governo, as coisas só pioraram. O presidente nunca escondeu seu desejo de extinguir a Ancine e “filtrar” o investimento no audiovisual de acordo com a sua ideologia. Orgulhoso da sua ignorância, falou até em privatizá-la. Como o desejo de destruição esbarra no Congresso, responsável pela aprovação do fim da agência, a famiglia e seus asseclas vêm minando o desenvolvimento do audiovisual e tanto o setor quanto a diretoria da própria agência não tem mostrado qualquer poder de reação a este debacle.
Nos últimos dias, abundam notícias sobre o passivo nas contas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Como se política cultural fosse um livro contábil, sem a influência do fator humano - para o bem e para o mal - esquecendo que este Fundo foi o único mecanismo de desconcentração de recursos, que contempla os diversos elos da cadeia produtiva e tem como principal instrumento de financiamento uma contribuição produzida pelo próprio setor. Tudo isso possibilitou que todos os estados brasileiros produzissem audiovisual através dos arranjos regionais. Ainda que estejamos muito distante da desconcentração de recursos, mácula da sociedade brasileira, o FSA foi o único mecanismo que contribuiu para amenizar este quadro histórico, com a obrigatoriedade do investimento de, pelo menos, 30% dos recursos provenientes de editais públicos em projetos cujos proponentes são produtoras independentes das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e de10% para a região Sul e os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Em 2009 o Sudeste concentrava 99% destes recursos, em 2016 este número cai para 65%, o que ainda representa mais do que todas as outras regiões juntas.
Mesmo que demande ajustes na sua engenharia de financiamento e na dinâmica de difusão, existe uma política pública que transformou o setor num polo gerador de mais de 91 mil empregos, que movimenta cerca de R$ 25 bilhões anualmente e permitiu uma produção constante e crescente de obras audiovisuais na última década. Com a ampliação de recursos do FSA, o número de filmes produzidos anualmente sobe de 74 filmes em 2010 para 158 produções em 2017. Mais importante ainda, construiu um tripé institucional de sustentação do setor de forma democrática, com a criação de uma agência de regulação e fomento para o setor (Ancine), um fundo que tem como esteio de financiamento uma contribuição que incide sobre a própria atividade (FSA) e uma lei que criou cotas para conteúdos audiovisuais na TV fechada e ampliou o financiamento do setor com a criação da Condecine Telecom (Lei 12.485).
Tal qual como aconteceu com a Embrafilmes no final da década de 80, quando todos os seus êxitos foram esquecidos e a empresa tornou-se o repositório de críticas de cineastas, produtores, gestores, imprensa e políticos, cada vez mais encantados com a suposta eficiência e modernidade de um projeto neoliberal que se disseminava como uma metástase na América Latina após o Consenso de Washington. No Brasil, este "neoliberalismo abrasileirado", como disse Sallum Jr., se instaura através de um aventureiro vendido pelas nossas elites como “caçador de marajás”. Numa canetada, o cinema brasileiro perdia não só o seu principal financiador e distribuidor (Embrafilme), como também os seus mecanismos de fiscalização (Concine) e proteção frente ao cinema estrangeiro (o fim da cota de tela). Após chegar a ocupar 35% do mercado na década de 1980, com o desmonte das estruturas governamentais de apoio ao cinema, em 1992 os filmes nacionais respondem por apenas 0,05% do mercado de exibição no Brasil, o que representou uma produção de três filmes naquele ano.
Depois de um período de otimismo exagerado, que não permitia uma análise das incoerências e contradições da política cultural adotada, e de um monitoramento de dados caolho, que só enxergava o que era conveniente para o discurso reinante dos seus gestores, emergem as fragilidades deste modelo. Na ressaca desta miopia, os dois pilares desta política pública, a Ancine e o FSA, se tornam as novas “Genis” das instituições públicas do campo da cultura, levando ao seu desgaste diante do setor e ao “apedrejamento” social, como aconteceu com a Embrafilme no passado.
A culpa não é do carteiro –
O Tribunal de Contas da União (TCU), atendendo às suas atribuições, notificou a Ancine e apontou indícios de ineficiência e de má gestão e deu 15 dias para uma posição sobre o embargamento dos recursos do FSA, suas consequências para o setor e quais as atitudes estão sendo tomadas para o seu enfrentamento e mitigação. A expectativa era de que após este “aperto” do TCU, os R$ 738 milhões do FSA, represados desde 2018, finalmente seriam “descongelados” e as mais de 600 produções nacionais paralisadas poderiam ser retomadas.
Para a surpresa do setor, a Ancine divulga uma nota pública na qual afirma, entre outras coisas, que foram estabelecidos contratos acima da marca de R$ 944 milhões, causando um rombo de mais de R$ 200 milhões no caixa disponível pelo Fundo. Portanto, os recursos do FSA não são suficientes para o pagamento dos projetos já contratados e, muito menos, para o lançamento de novas chamadas públicas. De onde surgiu este passivo é que ninguém ainda conseguiu explicar.
Isso tem que ser apurado, mas não pode se tornar um factóide cujo fim é a eliminação da política pública para o audiovisual construída neste século e que vem sendo sabotada e desestruturada desde 2017. Especula-se, inclusive, que grande parte da responsabilidade do rombo nas contas do FSA teria sido produto do programa de editais “Audiovisual gera futuro”, criado pela gestão pós-golpe. Foi apresentado um “pacote” de 12 editais, num total de 1,2 bilhão de reais, com o objetivo de seduzir e calar a classe. Alguns deles sequer foram lançados. É urgente uma posição da agência, sobretudo, do seu diretor-presidente, Alex Braga, que chegou à direção na gestão pós-golpe e é procurador da Ancine desde 2003.
Ainda que permaneça num silêncio canhestro, sem demonstrar qualquer ação ou capacidade de enfrentar o boicote e a desestruturação da agência e do setor, seja por incompetência ou encalistramento diante da sanha de destruição bolsonarista, a diretoria colegiada da Ancine ainda possui alguns técnicos. Portanto, pode existir alguma interlocução com cineastas, produtores, associações e sindicatos do setor, que devem reivindicar este diálogo urgente, fundamental para a sobrevivência dos cacos que ainda restam da política para o audiovisual gestada neste século. Mais do que o diálogo deve ser exigido desta diretoria que abandone a comunicação através de sinais difusos, com respostas e notas públicas que parecem escritas por uma coordenação de atendentes de telemarketing. Gestores de uma agência que reivindiquem estes cargos não devem ficar apenas se defendendo de modo evasivo das arguições do TCU e sem capacidade de se pronunciar de forma franca e propositiva. Agindo assim, certamente terá o apoio da classe, ao invés da chuva de liminares que recaem sobre a agência exigindo o cumprimento dos seus contratos.
Mas não há nada que esteja tão ruim que não possa ficar pior. Em 2021, se ainda estiver no poder, o presidente irá indicar mais dois diretores, um deles o diretor-presidente da agência, e já elegeu o perfil para os cargos: “É Bíblia embaixo do braço, joelho ralado no milho e que saiba 200 versículos da Bíblia”. E a agência, ou o que restar dela, terá uma direção “terrivelmente evangélica”. Aí, como disse o mentecapto de Brasília: “Acabou, porra!”
Sandro Santana é escritor, cineasta e Doutor em Políticas Culturais pela UFBA.
Texto anteriormente publicado na Revista Fórum.
Comentarios