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Coringa e Édipo Rei: Aulas na Pandemia entre vilões e tragédias

Atualizado: 24 de abr. de 2021

Ensaios Etílicos de Silva dos Vales

Édipo diante da Esfinge

Estava lendo notícias sobre as atividades escolares durante a pandemia. Súbito, esse tédio esporádico e cíclico, típico da quarentena, surgiu. Eu resolvo o tédio caminhando no parque. Porém, antes de pisar na primeira esquina, gotículas de chuvisco irritaram meus cabelos. Retornei. Na vizinhança ecoavam ruídos da nova modinha viral: ‘lives’! Finalmente os jogos de futebol encontraram espetáculos para rivalizar no índex de ‘opções horríveis para gastar horas diante de uma tela’.

Sem caminhada e com ruídos da vizinhança, seria difícil ler e escrever. Alternativa: algum filme. Encontrei na lista de espera o ‘Coringa’ (2019, dirigido por Todd Phillips, roteiro do próprio Phillips e Scott Silver). Antes do longa-metragem sobre o psicótico vilão rival do sombrio herói Batman... fui até as bebidas. Selecionei uma garrafa de conhaque chulo. Adaptações cinematográficas das histórias em quadrinhos exigem doses fortes para neutralizar o constante risco da frustração.

Duas horas depois, estavam concluídas: a narrativa de ‘Coringa’, as ‘lives’ da vizinhança e a garrafa de conhaque chulo (santo conhaque!).

Agora, estamos aqui. Pouco importa a avaliação cinematográfica de ‘Coringa’. A narrativa transita nos limiares perigosos do clichê sociológico da tragédia socioeconômica articulada com a indagação “como nascem os demônios (criminosos)”. Nota de rodapé no meio do parágrafo: a cultura ocidental judaico-cristã ecoa em nossa mentalidade: “os demônios são anjos caídos”.

Bem, como dito, a avaliação estética do filme, aqui, é irrelevante. Dois pontos são prioritários para nós que abordamos as atividades escolares na pandemia. Um ponto: as narrativas audiovisuais e as ‘graphic novel’ aos poucos migraram das jornadas de herói para anti-heróis, daí um passo para as jornadas dos vilões. Há anos comentava sobre o inevitável advento dos anti-vilões. E eis a curiosidade: enquanto os heróis (e nesse caso, o soturno Batman) são narrados no rótulo (quase) adolescente de ação e aventura, um vilão é agraciado com drama sem as sequencias de lutas, tecnologias e explosões. Outro ponto: há sim, no desenrolar do filme, uma expectativa alimentada pelas informações que nosso imaginário arquiva das tantas produções com o Batman desde quadrinhos e seriados de tv até as recentes adaptações pomposas hollywoodianas. O risco de um espectador frustrado corresponde diretamente ao enxame de dados acumulado sobre o personagem. Elaborar uma narrativa dramatúrgica com personagens/histórias conhecidas do amplo público não é novidade tampouco pertencimento do cinema ou do pós-modernismo. E também é algo presente nas bravatas da ‘opinião pública’. Sempre um risco.

Após o filme ‘Coringa’, minha mente gritava reiteradamente: édipo édipo édipo. Entretanto, sem relacionar as crises do personagem Arthur Fleck (o coringa) sobre sua paternidade e os conflitos funestos com a mãe. Quando, na Grécia antiga, o poeta e dramaturgo Sófocles escreveu uma das mais preciosas e intrigantes obras da humanidade (Édipo Rei), jamais imaginaria ele que milênios depois o Freud cunharia o ‘Complexo de Édipo’ ou que a sua arriscada opção artística seria “costume estético” em toda uma época: produzir arte com narrativas conhecidas pelo público.

Jovens gregos contemporâneos do Sófocles usando a linguagem da garotada de agora diriam assim: “nem tem como dar spoilers de ‘Édipo Rei’, a história em si é um imenso spoiler”.

Na adolescência, escutei falar do Édipo e da Jocasta. Pensei evitar informações para não estragar o prazer da leitura. Então, soube que os gregos conheciam muito bem a história quando Sófocles escreveu. Daí, estabelecido um desafio: “vou pesquisar tudo que puder e somente depois lerei essa tragédia”. Feito. Ah, entranhas abomináveis da mente humana!!! Eu já sabia tudo e ainda assim aquelas páginas sequestraram minhas prioridades. Quantas outras vezes entre a releitura de ‘Édipo Rei’ e o sabor de alguma genialidade moderna indicada por amizades... cravei a releitura.

Aconselho, a quem conselhos queira, saborear as duas tragédias: do Arthur (Coringa) e do Édipo. E também que possamos aprender, com a “feitura” dessas obras, um tópico incômodo e resistente na construção de “nossa” Opinião Pública e, portanto, nos nossos embates políticos: os discursos sobre temas vitais à população e às instituições estão baseados em personagens/histórias amplamente conhecidas pelo público, porém com abordagens suscitando a oferta de um novo produto (obra, assunto) para nossa apreciação.

Assim ocorre com os supostos dilemas acerca das atividades escolares na pandemia. A sociedade brasileira parece prostrada diante da Esfinge. Então, digo sem temor: não há dilema nisso! Não vos direi: “é conhecimento inócuo debater o exercício da docência na pandemia e considerar o retorno ou não das aulas presenciais”. A voz de Paulo Diniz cantarola na memória: “é lúcido, é válido e inserido no contexto”. Muito embora, lembremo-nos das tragédias referidas nos parágrafos acima: quem são os heróis, ou anti-vilões, pouco importa; já conhecemos a história. Diante de uma obra artística, devo apreciar a narrativa apresentada. No entanto, diante de uma iminente decisão política e social é imprescindível apreciar a História, real e efetiva, que estimula o caráter impreterível do “decidir”.

Então, peço, gentilmente, a suspensão e suspeição dos discursos acalorados gritados dentro de trincheiras. Tentarei em breves linhas apontar qual história fecunda a necessidade em refletir e decidir sobre atividades escolares na pandemia.

A história do sistema de ensino brasileiro, numa relação escola x pobres, apresenta três marcos decisivos: 1971, 1988 e 1996.

1971- Lei 5.692/71, a LDB que extinguiu o exame de admissão, promoveu avanços no 1º grau e exigiu que o 2º grau deveria ser obrigatoriamente profissionalizante. Alegando combater um ensino focado exclusivamente no preparo para universidades. Críticos apontavam que o governo tentava driblar a ausência de vagas no ensino superior; Jarbas Passarinho, Ministro da Educação, defendia que os ricos deveriam também estudar cursos profissionalizantes. Resultado: escolas privadas garantiram ensino médio cientifico com ares de técnico profissional. Apesar dos percalços dessa LDB, o fim da admissão ampliou o acesso ao ensino médio. Bebe um gole comigo e encara o seguinte: na década de 70 o número de matrículas no ensino médio aumentou 151,8% (acredite, equivalente a meros 1 milhão e 700 mil alunos), sendo que a rede privada absorvia quase metade: em 1980 correspondia a 46,5%.

1988 – a nova Constituição Federal é aprovada nas empolgações democráticas. Eu estou bebendo e não me lembro das críticas que teceram para essa coitada. O fato é que a partir de 1988 a Universalização do ensino se tornou um caminho sem retorno. Em 1986, por exemplo, os registros indicavam 20% dos brasileiros com idade escolar sem vaga nas escolas; e 20% das crianças entre 10 e 14 anos eram analfabetas.

1996 – Lei 9.394/96, a LDB que repaginou valores e burocracias no sistema de ensino brasileiro. Entre acertos e supostos devaneios, definiu as garantias dos pobres estudarem. Se nas décadas de 70 e 80 assistimos o crescimento de matrículas no ensino fundamental; na década de 90 houve a intensificação do ensino médio. No início dos anos 90 os registros eram: (considerando brasileiros acima de dez anos) 39% com menos de três anos de escolaridade e 14% com mais de 11 anos. Duas décadas depois (início dos anos 10): 39% tem mais de 11 anos de escolaridade e 19% estudou menos de três anos.

Bom, você está pensando, aonde esse conhaque chulo nos conduz?

Bem, falando no Édipo... A tragédia dele era saber qual crime cometeria. E esse parece o árduo trabalho de quem (acertando ou equivocando) pensa os rumos da educação escolar no Brasil. Por sinal, no tocante à educação escolar, encontrei na gaveta das anotações e fichamentos algumas linhas interessantes escritas em 1993, pelo professor Paulo Rennes Ribeiro:

“Os governos devem aproveitar as idéias e projetos que deram ou estão dando certo, aperfeiçoando cada trabalho, mesmo se forem de adversários políticos, pois a História nos tem mostrado que, no Brasil, se julga uma obra ou um trabalho não pelo seu mérito ou pelo beneficio que está trazendo, mas sim pelo seu autor e pela ideologia que este traz.” (História da educação escolar no Brasil: notas para uma reflexão)

Bebamos mais alguma dose e vejamos aqui dois registros:

Em 2015, a imprensa noticiou com assombro os dados do Censo Escolar da Educação Básica 2014: a rede privada de escolas Aumentou sua fatia no alunado. Em 2008 correspondia a 13,3% das matrículas; em 2014 foi para 18,3%.

Ora, recortando apenas o Estado de São Paulo: a rede privada de ensino médio correspondia a 75,2% das matrículas em 1940; e a 43,2% em 1960.

Lembrando aí da historinha da LDB de 1971? Ah sim, LDB é o que sabemos - Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lembra que para fugir das normas do governo, famílias retiraram seus filhos da rede pública para a rede privada (por sinal, ampla).

Pois então, não tem algo estranho? Como que de repente no século 21 a imprensa noticia, em assombros, o aumento da rede privada de ensino? Ué, a ampliação do acesso às escolas não foi justamente aos poucos nos anos 70, mais intenso em 1º grau nos 80 e depois intenso em 2º grau nos 90? E durante esse trajeto de 30 anos, a notícia não era a redução drástica da participação da rede privada no número de matrículas?

O conhaque ainda não embebedou. Juro.

Eis porque em plena pandemia não há dilema sobre aulas. O que está em pauta não é atividade docente ou retorno presencial das escolas.

A participação percentual das escolas privadas no universo de alunos matriculados era alta porque poucos estudavam. Quando governos disponibilizaram vagas escolares e o ato de estudar se tornou não apenas universal, mas obrigatório, a rede pública adquire imensos percentuais no universo de matriculados. Afinal, eram muitos pobres a educar neste país continental. Então, por que depois da universalização, o índice de escolas comerciais (chamadas particulares) voltou a aumentar?

Ora, eis aí a chave. Até para entender os velhos comentários sobre como antigamente as escolas públicas eram de qualidade. E hoje são abandonadas.

O alvo, como numa tragédia, é definido e estabelecido irretocavelmente: a educação escolar deve existir a serviço do filho da classe média entrar na universidade e ascender social e economicamente como num passe de mágica.

As classes médias no Brasil (sem agravar a todas as famílias - melhor avisar, sorrir e acenar) demonstram ao longo das décadas que não estão dispostas a participar de planos (e “devaneios”) educacionais de qualquer governo que seja (militar ou civil; direita ou esquerda). O alvo, como numa tragédia, é definido e estabelecido irretocavelmente: a educação escolar deve existir a serviço do filho da classe média entrar na universidade e ascender social e economicamente como num passe de mágica. Assemelha como arremedo da tosca e estadunidense “doutrina do destino manifesto”. Entretanto, eclode como Apartheid sul-africana.

Sim, não há dilemas sobre escolas na pandemia!!! Há a reiterada opção por apartheid: sempre que a plebe adentra nos espaços escolares, as classes médias migram para escolas comerciais. Não importa qualidade ou eficácia. Ledo engano. É o medo do “vínculo degenerativo”.

As invencionices tais como teleaulas nada mais são do que tentativas institucionais de responder à cobrança das famílias de classes médias: “meu filho perderá um ano?” E aqui, curiosamente, não vemos distinção ideológica: alguns que gritam “cpf acima do cnpj” também refutam o filhinho “perder um ano escolar”.

Os filhinhos das classes médias (e também dos ricos), tal como Édipo, já estão com destinos traçados e não podem ser atrasados. “Mas aí”, ah pútridos plebeus que se reproduzem aos vagões, por que existem nas escolas?

Os filhinhos das classes médias (e também dos ricos), tal como Édipo, já estão com destinos traçados e não podem ser atrasados. “Mas aí”, ah pútridos plebeus que se reproduzem aos vagões, por que existem nas escolas? Oh, em épocas consequentes das legislações dos anos de 1971, 1988 e 1996, a universalização impele que o ano letivo para ser validado exige o cumprimento por todas as escolas. E as redes públicas não podem garantir o serviço para sua clientela via internet (ainda é altíssimo o número de lares que teve inclusão digital através de um smartphone simples sem pacote de dados suficientes para streaming). Então, nalgum momento as escolas estatais deverão reabrir para que os pobres estudem (simulem) e o ano letivo esteja garantido??!!!

“Mas aí”, é capaz de genitores zelosos pela sua prole falarem “a culpa não é nossa”.

O único argumento sedutor nessa tragédia é a alegação da garantia econômica aos professores da rede privada. Diante de tal argumento, até as crianças sabem como as professoras reclamam do calvário que tem sido trabalhar remotamente e da previsível ineficiência avaliativa. “Mas ué”, seria simples: dirigentes das escolas comerciais (particulares) aliados com papais e mamães deveriam exigir dos governos o suporte e subsídio verdadeiro aos professores da rede privada. Ou as teleaulas poderiam ocorrer como alternativa de constante estímulo cognitivo e ampliação do conhecimento, porém sem vínculo para o ano letivo (desde já anulado). “Mas ué”, quais papais e mamães pagam escola para os filhinhos, apenas, por causa de desenvolvimento cognitivo e conhecimento?

Alguns dirão: esse teu conhaque é chulo mesmo!

Agora sim, podemos, como Édipo, visualizar uma verdadeira Esfinge em nossas vidas.

Eis que são reveladas, como num apocalipse, as facetas do dilema da educação escolar dentro ou fora da pandemia. O que importa é o governo resolver o destino exitoso dos filhinhos de classe média. E os professores e estudiosos da Educação cumpram com os ritos de vossas tragédias.

Afinal, não sei se culpa do conhaque chulo, a sensação é o eterno risco desse país se tornar, na sua ampla maioria, um amontoado de coringas e édipos.


Silva dos Vales é personagem sem gênero, sem etnia e sem credos. Detesta futebol e adora Capoeira.

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Sobre o autor deste ensaio-conto:

Lodônio de Poiri é poeta e escritor.

Um epicurista anarquista e vice-versa

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