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Churrasco e Florestas: tópicos de Hipocrisia Seletiva

Ensaios Etílicos de Silva dos Vales


“Primeiro pensei: é um sonho. Depois cogitei: estou esquizo... Psiquiatras e Psicólogos, lá vou eu! Enfim, tive que aceitar a realidade; mas sigo sem absorver tranquilamente.”

Essas foram frases iniciais de um amigo que telefonou, ontem, ansioso por relatar o ocorrido numa viagem de trabalho em cidade litorânea.


Após as atividades, alguém disse “o melhor almoço é na churrascaria”. Dissipado, então, o desejo de comer moqueca na praia. Durante a refeição, ele sentou afastado alegando silêncio para concluir umas planilhas. Frustração: um grupo desconhecido ocupou a mesa ao lado em caloroso debate sobre o destino das florestas. Anunciavam cada postagem nas mídias digitais combatendo o desmatamento. Repudiavam o descaso para com as matas e proclamavam a extrema urgência de fortalecer a legislação ambiental. Todo debate durante o desfile de espetos. De repente, o silêncio. Todas as cinco pessoas do grupo “descansavam” do rodízio de churrasco e estavam caladas, frontes inclinadas aos smartphones.

O amigo relatou a sua angústia no momento. Depois, indagou: o que faz pessoas consumirem churrasco bradando contra o desmatamento?


Curiosamente, a resposta não é difícil.

Eis aí um exemplo típico de Hipocrisia Seletiva. Que nada mais é do que um dos frutos de um dos principais dilemas para o aprimoramento de uma sociedade: a Escassez Filosófica.

Consultando desde a sabedoria milenar até os conteúdos científicos atuais, tive a audácia, numa tarde embriagada, de organizar todos os entraves e obstáculos de um povo no ‘Conjunto de Escassez’ (independente da época ou conceito ou metodologia, as explicações sobre aprimoramento/desenvolvimento recaem de algum modo na manifestação de algum tipo de Escassez).

Muitos países no século 21 não sofrem necessariamente com escassez tecnológica ou de recursos específicos. A Escassez Cognitiva e a Escassez Filosófica são os dois entraves principais no cenário global atual. A primeira já era esperada e foi apontada, dentre outros, pelo Pierre Lévy quando, nos primórdios da comunicação digital, alertava sobre a Exclusão Cognitiva: na era de consumo global a indústria visará vender computadores de bolso (smartphones) ao maior número possível de indivíduos; assim, a inclusão digital não seria o problema. Deveríamos focar na inclusão cognitiva, em como o indivíduo desenvolverá capacidades para utilizar a tecnologia da qual terá acesso.

No Brasil, além do dilema da Escassez Cognitiva, enfrentamos a Escassez Filosófica. Muita gente que está “incluída cognitivamente” revela amplas dificuldades em perceber incoerências entre o ‘modus vivendi’ e as discursividades ancoradas nos jargões e bandeiras e emoções bondosas.


E as “pessoas consumirem churrasco bradando contra o desmatamento” entra onde nisso?

O consumidor contumaz de churrasco é um exemplar da Hipocrisia Seletiva. Ele brada contra políticos corruptos e ardilosos; brada contra pecuaristas malvados e gananciosos; brada contra industriais ambiciosos e ilícitos. Culpa tais políticos e pecuaristas e industriais pelo Desmatamento e descaso com a Proteção Ambiental. Porém, a Escassez Filosófica o impede de notar algo simplório: ‘só há vendedor porque alguém compra’. Enquanto o consumo de carne bovina for imenso e crescente, mais e mais hectares serão necessários.


Nesta era da inclusão digital, qualquer cidadão consegue levantar dados sobre quase tudo. Basta acionar o buscador no smartphone e descobrir o que é a pecuária e que a carne não é um item de prateleira. Ainda que as últimas gerações sejam eminentemente urbanas e a maioria das pessoas conheça bois apenas por vídeos e fotos; e dentre aqueles que já conheceram bois, muitos não sabem o que é uma fazenda de pecuária bovina. Ou, quem sabe, evitam saber quantos litros de água por dia são consumidos por cabeça de gado; quantos hectares são necessários para pastagem do rebanho bovino brasileiro que, de acordo com o IBGE, atingiu em 2020 a marca de 218,2 milhões de cabeças de gado; e quanto maior for o consumo de carne bovina (nacional e/ou internacional) mais hectares serão necessários. E isso é traduzido como mais desmatamentos. Observemos que, em tons de celebração, a própria Embrapa informa: “No Brasil cerca de 95% da carne bovina é produzida em regime de pastagens, cuja área total é de cerca de 167 milhões de hectares”. Isso mesmo: 167 milhões de hectares!!! A grande maioria deles se encontra sempre vazia. Porque a pecuária extensiva (outrora tratada como algo primitivo) é a garantia do selo Carne Orgânica. A pecuária de gado nada mais é do que a Produção de Capim. Sim, senhores e senhoras, vós urbanos que saem de vossos bairros apenas para ecoturismo, saibam: na maior parte do tempo as pastagens estão vazias para atender o rodízio no uso. Isso gera alguns dados (celebrados economicamente), tais como: entre 2000 e 2016 o abate de bovinos na região Norte do Brasil (floresta amazônica) aumentou 239,12%. Superando em números absolutos a região Sudeste e ainda as regiões Nordeste e Sul, juntas. Em 2000, o Norte superava, por pequena diferença, apenas a região Nordeste. São dados do IBGE publicados no website da Embrapa e, pasmem, anteriores aos governos de figuras questionáveis como as dos Presidentes Temer e Bolsonaro. Sim, 239,12% de aumento no abate de carne bovina na Amazônia durante os governos Lula e Dilma. Não se trata de quanto custa o quilo da carne (pergunta ao “teu” açougueiro se, em alguma crise econômica, ele enfrentou produto perdido nos ganchos). Não se trata, sequer, de Economia ou de Cultura. Mas sim, de Filosofia.

Qualquer cidadão pode consultar dados e relatórios da ONU sobre os limites e riscos da pecuária bovina. E, curiosamente, é cada vez maior o número de pessoas repostando nas mídias digitais os sustos e reprovações ao desmatamento e as declarações de amores às florestas. Enquanto comem churrasco semanal. Enquanto compram quilos e quilos de carne bovina para a família.


Meu amigo, no auge de sua bondade e no fundo de seu mal-estar do século 21, compreendeu famílias, padrões culturais e até advogou acerca da “proteína animal”. Muito embora, em pouco tempo de papo, ele próprio pontuou que hábitos culturais mudam: e estamos dia após dia lutando por mudanças culturais quando combatemos o machismo e os preconceitos (jamais aceitaremos que se diga “ó, mas fulano não foi machista, isso é um ato típico da cultura dele”). O enfrentamento de padrões culturais alimentares é imprescindível, também. Para evitar “esquizofrenia social”. Para não cairmos na cilada das Hipocrisias Seletivas.


Enfim, quem consome muita carne bovina financia o desmatamento.


Entretanto, não espere que cidadãos da sociedade do consumo, ancorados no paradigma do prazer, acatem realidades escancaradas. Tanto porque é mais fácil culpar algum político quanto porque o prazer deve ser prioridade, afinal, todos estão muito cansados da desgastante vida ordinária que impede usufruir do paraíso aqui e agora.


E esse paraíso será uma floresta apenas se inserida numa publicidade da indústria turística.

Boa refeição!



Silva dos Vales é personagem sem gênero, sem etnia e sem credos.

Detesta futebol e adora Capoeira.

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Sobre o autor deste ensaio-conto:

Lodônio de Poiri é poeta e escritor.

Um epicurista anarquista e vice-versa



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