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Foto do escritorArmazém na Estrada

Abaixo a covardia

por Waleska Barbosa


Tenho pensado muito sobre o medo. É um tema recorrente. É olhar de frente para ele como conceito, como sentimento, como algo que paralisa, que me faz realizar algo. Põe minha vida em movimento. Acontece que a conquista não é para sempre. Aliás, é mesmo muito rápida e etérea. É como o preceito de um grupo de ajuda, só que ao contrário. Só um gole. Só um trago. De coragem. Todo dia. O enfrentamento do medo não tem duração certa. Pode ser volúvel como o éter. Pode ser dissipado como névoa aos primeiros raios de sol. Como queria ser pedra. Montanha. Como queria ser coragem serena perene infinita. Coragem que só alumia. Não pisca. Não apaga. Não se esquece. De ser. Ando assim. Largada. Desvalida. Fincada a um desencorajar que mina energias. Estanca meu caminhar. Minha vontade de estar em outro ponto. De mim. Ponta cabeça. Cabeça de lança. Ponto de Oxóssi. Pontiaguda. Seta no alvo. Voltei ao começo. A roda girou. Deixou-me ali, lá, longe. Roda-gigante na pausa. Parada lá no alto. E o medo não a põe em movimento. Mas o que é mesmo o medo? Podia chamar de preguiça. Indiferença. Cansaço. Apatia. Desinteresse. Descrença. Lembro do que afirmou a escritora Maria Valéria Rezende em entrevista. “Não tenho mais medo”. De tudo o que falou, de tudo que pude conhecer dela a partir daquelas palavras todas, essa frase foi o que ficou. Como legado. Como o ponto que mais me fazia admirá-la. Invejá-la. Como é isso, mulher? Como se aprende isso? Você contou que ou era isso ou era sentir tanto medo a ponto de destitui-la, de destituir-se de tudo. O que buscava. Enfrentava. Queria. Lutava. Naqueles tempos de ditadura. Outra mulher, preta, falou sobre o que fazia com o medo. Compartilhou como chegou a essa grandeza e suas palavras voltaram a ecoar depois de sua morte, como herança que nos deixa. “Não tenho medo de nada. Temos que ensinar o medo a ter medo de nós”, disse Elza Soares. Como é isso, mulher? Como se aprende isso? Elza não está aqui para responder. Mas viveu 91 anos de forma tão intensa imensa – tanto se pegar o bicho pega, se ficar, o bicho come que, ao fazê-lo, ensinou o como. Ela seguindo. Escapulindo. Se safando. Ao amedrontar o medo. Eu quero amedrontar o medo. É isso. Quero que esse bicho grande e invisível, se apequene ao me enxergar. Mesmo que de longe. Ou mesmo que nem me enxergue. Apenas sinta meu cheiro. Intua minha aproximação. Saiba da minha existência. Não me conheça pessoalmente. Só de ouvir falar. Tantas canções falam sobre o medo. Belchior reiterou versos. Ao contrário das mulheres de quem agora exijo respostas, ele assumiu. “Eu tenho medo”. Mas recuou. “E medo está por fora”. Até confessar que, em outras palavras, não se separa do medo, companheiro. “Morre o meu medo e isto não é segredo. Eu mando buscar outro lá no Piauí”. A mexicana Julieta Venegas, em canção traduzida por Lenine, apontou tantos tipos categorias possibilidades – de medo – quanto o possível de se guardar em um poema. Resume todas ao concluir. “Medo que dá medo do medo que dá”. Ao sentir esse medo, quando vem indestrutível, sinto-me silenciada. Com preguiça. Indiferença. Cansaço. Apatia. Desinteresse. Descrença. Melhor ficar aqui. Agachada. Melhor ficar aqui. Fugida. Melhor ficar aqui. Fingida. Melhor ficar aqui. Largada. Desvalida. Mas não é. Melhor. Porque ao fazê-lo, sou fustigada. Por tudo que entupo, encolho, enfio, silencio. É trabalhoso o movimento de chacoalhar. É difícil o retorno. Destravar o freio e ver a roda-gigante voltar a girar. É trabalhoso. Mas urgente. Quase não aguento. Sinto vertigens. Quase não aguento o amedrontar. Sinto mortes. Mecho o dedão do pé. Ensaio um movimento. Apaziguo a mente. Escrevo. Lembro Guimarães. Desenhando. A vida. O que ela quer da gente. A vida, que danada, quer da gente coragem. Que se autodestrua o medo que dá medo do medo que dá. Abaixo a covardia. Contrário. Contrária.


Waleska Barbosa é escritora e jornalista.

Idealizadora do 'Julho das Pretas que Escrevem no DF'

Autora de 'Que o nosso olhar não se acostume às ausências' (Arolê Cultural; 2021)

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