Por Sandro Santana
Há 19 anos atrás o Brasil perdia uma das suas mentes mais brilhantes
Num momento em que o obscurantismo intelectual e o ambiente persecutório às políticas públicas para a cultura se alojam no discurso oficial do Estado brasileiro, a leitura e as ideias de Milton Santos afirmam sua atualidade. O dia 24 de junho de 2000 ficou marcado pela morte deste intelectual independente, outsider, como ele costumava definir sua atuação enquanto pensador que nunca se alinhou a grupos, movimentos ou partidos.
Em tempos de pandemia, isolamento e de um chefe de Estado que, desde a sua campanha eleitoral, ataca as instituições democráticas e tem como projeto de governo a afirmação de uma ditadura, a lacuna deixada por este pensador se faz presente de forma abissal. Em 1999 já detectava a desestruturação da política no Brasil com a inexistência de um projeto conciliador entre os interesses da classe média e dos partidos e a inércia dos intelectuais, que segundo Santos, não estariam mais contribuindo com um conjunto de ideias para a política. Dois anos antes, já denunciava o acovardamento dos intelectuais refugiados em “clãs e clubes de enturmamento” dentro das universidades no discurso O intelectual e a universidade estagnada, proferido ao receber o título de professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Creio que estas duas observações nos oferecem vias consistentes para a análise do trágico itinerário que nos levou a este cenário fascistóide que se estabeleceu na política brasileira.
A interdisciplinaridade e acuidade intelectual de Milton Santos, cuja obra se espraia por mais de 40 livros publicados em diversos idiomas, centenas de artigos em revistas científicas e jornais, possibilitam análises esteadas em diversas áreas do conhecimento das ciências humanas. Neste breve texto, vou voltar as lentes para a minha área de pesquisa, as políticas públicas para a cultura, e reter minha interlocução com o texto “Da cultura à indústria cultural”, publicado na Folha de S. Paulo, em 19 de março de 2000, portanto, há duas décadas.
Já nas suas primeiras linhas, o autor traz para o debate um tema que nos anos seguintes entraria na pauta do Ministério da Cultura, sobretudo na gestão de Gilberto Gil, mas que até então era pouco debatida pela pasta: a ideia ou o conceito de cultura a ser adotado no Brasil. Até o ano de 2002, a concepção de cultura incorporada pelo Ministério da Cultura, e, portanto, a ideia de cultura oficial do país, era a de cultura enquanto “belas artes”, com suas metas e políticas voltadas para as “artes clássicas” e a indústria cultural (pintura, música, cinema, escultura). As manifestações culturais populares (capoeira, festas tradicionais, samba de roda, etc.) eram amontoadas numa prateleira com a tarja “folclore”, petrificadas em um passado idealizado e convenientemente atrasado, sem contradições, rústico e primitivo; portanto, distante dos cultuados bons modos civilizados.
Santos chama a atenção para a ideia de cultura enquanto “manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado”, e se aproxima do conceito de cultura desenvolvido pelo idealismo alemão no século XIX, que busca nas especificidades de um povo a sua ideia de cultura e propõe a pluralização do termo: “culturas”. Esta operação vai ganhar relevo nas gestões Gil-Juca (2003-2010), com a adoção de um conceito antropológico de cultura, mas perde sua essência ainda nas gestões de Ana de Hollanda (2011-2012) e Marta Suplicy (2012-2014), para no pós-golpe entrar num ocaso que remete aos anos que precedem o governo FHC, quando a pasta era “rifada” entre nomes que sequer militavam na área e convivia com um rodizio de ministros e a constante ameaça de extinção. Em uma década, entre os anos de 1985 e 1994, o MinC teve dez ministros diferentes.
Ao reivindicar um conceito plural de cultura, que se manifesta pelas mais diversas formas de expressão da criatividade humana, não só pelas chamadas “belas-artes”, Milton Santos está advertindo sobre os incontornáveis perigos e armadilhas que a sedutora e rentável indústria cultural impõe àqueles que a abraçam e se tornam meros fornecedores de commodities e insumos culturais.
Quando a cultura se torna apenas um “bom negócio”, slogan da política cultural do governo FHC, nos leva à ilusão de servir a valores que na verdade estão sendo negados. O que, não raro, torna seus produtos culturais anedotas e caricaturas de si próprios, sempre se medindo de acordo com o olhar “dito cosmopolita, de forma a atender aos propósitos de lucro dos empresários culturais. Mas cosmopolitismo não é forçosamente universalismo e pode ser apenas servilidade a modelos e modas importados e rentáveis”, como sentenciou o geógrafo baiano que, em 1994, recebeu o prêmio Vautrin Lud, o Nobel de Geografia. Ao jogar para debaixo do tapete toda a responsabilidade de uma epistemologia crítica, esta operação leva ao distanciamento cada vez maior dos produtores, artistas e intelectuais daqueles que deveriam ser os fins principais de uma política pública para a cultura: o acesso universal aos bens produzidos com recursos públicos e a produção de bens culturais enquanto instrumentos para a formação de seres humanos melhores.
Envoltos em “cortinas de fumaças” criadas pela sedução do capital – que mede o valor de uma obra ou artista pelo resultado imediato ou pelo sucesso apenas mercantil – ou mesmo pelos discursos de gestores embevecidos com um “economicismo” infrutífero que glorifica os valores adicionados pela cadeia produtiva e os impostos gerados pelo setor, os produtores culturais tornam-se estrategistas, cujas metas se concentram mais em seduzir aqueles que Robert Kurz acertadamente epitetou de “rajás do capital e mandarins da administração” do que em atingir o público e as propostas artísticas do projeto. Enquanto os artistas se tornam garotos propagandas empunhando as marcas das empresas patrocinadora, tal qual os bobos da corte e os vassalos na era medieval, ajoelhando-se aos pés dos senhores da pós-modernidade: as marcas dos conglomerados internacionais.
Ao final, Milton Santos convoca o Ministério da Cultura, hoje transformado em Secretaria, e, na sua falta, as universidades públicas para o enfrentamento deste problema urgente: a entrega do futuro do “trabalho intelectual em geral e das tarefas especificamente culturais em particular” às leis do mercado. Tudo que foi dito neste texto é de uma atualidade estarrecedora, afinal, há duas décadas uma das nossas mentes mais brilhantes já nos havia advertido e reivindicado o debate.
Hoje, com o Ministério da Cultura destituído, após pouca ou quase nenhuma reação da sociedade, e as universidades públicas passando por um momento de cortes de verbas para a pesquisa e de intervenções no seu reitorado, é imprescindível que artistas, intelectuais e gestores proponham o debate e a construção de ações e metas para a cultura que superem a mera reivindicação de financiamento para o setor. Ao pensar políticas culturais apenas enquanto fomento caímos na armadilha da transformação de um projeto de democracia cultural e cidadã em uma “ação entre amigos” que se concentra em meia dúzia de CNPJs. Tomando de empréstimos as palavras de Milton Santos: “Não dá mais para fazer de conta que o problema não existe”.
Sandro Santana é escritor, cineasta e Doutor em Políticas Culturais pela UFBA.
Texto anteriormente publicado
na Revista Fórum, em 14/05/2020.
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