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Foto do escritorArmazém na Estrada

Uma história ligeiramente triste

Atualizado: 12 de mai. de 2021

por Débora Lima


"Não há outro inferno para o homem

além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes."



Não é que a pobreza torne, por si só, qualquer ser indigno ou ignorante, está aí a história para demonstrar que há espíritos sensíveis que se desenvolvem em meio às mais adversas circunstâncias, e até aqueles que vivem à Bukowski e fazem da sarjeta seu castelo, seu reino de inspirações e delírios poéticos. Há até pessoas que abrem mão de suas posses para serem livres da escravidão do desejo, outras que foram submetidas a situações cruéis por terceiros e, ainda assim, não perderam a capacidade de utilizar seus dons em favor de seus semelhantes, mas isso decorre de uma predisposição muito específica do espírito humano. O que acontece, em regra, dista muito desse ideal.

O fato é que estar sob o esmagador peso da falta de recursos básicos traz muitos perrengues para a vida prática, o que não é novidade para ninguém. Porém, sempre, ao menos desde a difusão das teorias Marxistas e LTDA, temos considerado os fatores responsáveis pela opressão do ponto de vista da classe, sem nos questionarmos muito como certas teorias condicionam comportamentos, incitando embates strictu sensu, contra as pessoas do trato cotidiano.

No quadro geral, tem-se que o pobre sofre por causa do rico, que não o considera senão como força de trabalho que é descartável, substituível à medida que envelhece, se torna obsoleto ou fica doente, alguém sem os mesmos sentimentos, sem as mesmas necessidades, sem a mesma capacidade cognitiva, sem quaisquer intuitos elevados. Apenas matéria, massa podre composta de fluidos e instintos animalescos, um meio humano, uma máquina. Só que essa massa, maturada em constante e progressiva degradação, em sua pequena casa, vivencia relações eminentemente complexas em que reproduz (pasmem) o mesmo desprezo que recebe, oprimindo como também é oprimida.


Não é, contudo, a finalidade deste breve solilóquio dissecar tais afirmações ou apontar a proporção da sombra de ideologias, como a supramencionada, que seguida por tantos governos autoritários, à guisa de promover igualdade, disseminou o ódio pelo diferente e matou milhões de fome ou outros tipos de tortura e condições extremas num Gulag, enquanto não lhes faltava whisky importado dos grandes imperialistas...


Nossos olhos, desta feita, estarão postos em um pequeno grupo, ao qual chamaremos de família, a família de Pietra, em que, como muitas outras, embora os interesses, em geral, sejam os mesmos, existe uma espécie de comensalismo, que se agrava por seus membros estarem espremidos entre os vínculos de sangue, agonizando pelo exercício das velhas funções conservadoras, que de tão contestadas pelo pensamento imperante (há tempo que a família é vista como instrumento do tacanha conservadorismo burguês, de modo que, à classe trabalhadora resta o sexo livre e a entrega de seus filhos aos cuidados do Estado, que, porém, nunca se preparou para receber o fruto da revolução sexual) e tomam a sutil forma de tirania. Ora, aquele que cumpre um papel que lhe foi imposto por circunstâncias mais fortes que seu querer e se sente sob um jugo, tende, inconscientemente, a se revoltar contra esse papel, mas, é claro, ao derramar-se o líquido vermelho que enche a taça da ira, só quem está embaixo fica encharcado.

Sabe-se que mulheres sobrecarregadas são, geralmente, tidas como as heroínas que propulsionam o mundo (que elas consideram desigual e castrador) para a frente. Ora, as acirradas lutas para alcançar o direito de trabalhar fora, não exoneraram a mulher pobre dos encargos domésticos, de modo que seu trunfo foi também sua derrocada. Inclusive porque, à medida que as mulheres tomavam para si mais responsabilidades, os homens foram abrindo mão de certos deveres como cuidar, prover e proteger. Então, muitas vezes, sob os cuidados de uma mulher oprimida por seu papel de gênero, há crianças que nada entendem acerca das mazelas ideológicas que fazem o seu lar um lugarzinho tão truculento.

É claro, porém, que, naquela tarde escaldada pelo sol revoltado no Nordeste, Pietra não fazia a menor ideia de nada disso, quando sua mãe chegou da casa da vizinha, aonde fora para depilar a sua virilha gorda e mal cheirosa com cera quente, a menina estava brincando, sem ter a menor noção das tensões que moldavam seu mundo tão pequeno. Como toda garota de dez anos, só se preocupava em brincar, passava horas na área livre que circundava sua casa na periferia da cidade, andando de um lado para o outro, desbravando a vida secreta das minhocas que viviam sob as pedras do chão de terra e cantando em dueto com o seu melhor amigo: um pé de palmeira que reinava soberano no centro daquele jardim sem flores.


Ao ver que sua mãe havia entrado, Pietra correu ao encontro daquela mulher de trinta e um anos, que, à época (em virtude das noites em claro que passava brigando com seu marido, que era ciumento e imprestável para se manter em qualquer emprego, e das jornadas extenuantes de trabalho), aparentava ser bem mais velha e abraçou-lhe pela cintura. A mãe a afastou, impaciente, com a mão desocupada e adentrou a humilde casa em direção à cozinha.

Procurou uma panelinha manchada de preto, de cabo partido e toda amassada que ficava guardada embaixo da pia do quintal, porque era o que de mais asqueroso havia naquela pequena casa. Abriu a sacola e tirou dela uma outra sacola, dentro desta havia um plástico laminado com a cera utilizada na depilação. Pietra já estava ao lado de sua mãe, gostava de assistir àquele ritual de glorificação de sua indignidade.

Já não perguntava nada, porquanto sua mãe já havia lhe dito que o fogo, a tudo, purificava. O mesmo fogo que um dia purgaria seus corpos era poderoso o bastante para restaurar aquela cera peluda. Ora, como já deve ter sido presumido pelo vasto conhecimento do nobre leitor acerca das vicissitudes da condição humana, aquela mãe não tinha dinheiro para comprar um quilo de açúcar a cada depilação feita a sete reais na vizinha que, a propósito, só pagava o serviço no fim do mês, quando seu amante a visitava e lhe trazia provisões. Então, não havia alternativas àquele ritual ignominioso.

Então, a mãe de Pietra pegava aquela massa doce repleta de pelos e colocava para ferver, a fim de que, uma vez liquefeita, pudesse extrair, um a um, os pelos pubianos que tornavam aquele instrumento de trabalho imprestável para novo uso.

Quando a mistura de açúcar e limão fervia, a mãe da menina pegava uma pequena peneira de alumínio e uma pinça e, com o esmero de um ourives, extraía cada pentelho do líquido avermelhado. Pietra olhava para aquele líquido brilhante pensando em quando sua mãe, em dias muito bons, lhe fazia pirulitos. Lembrou-se do dia em que, pensado ter cachorros-quentes na mochila, anunciara a todos os seus coleguinhas da escola que naquele dia teria um lanche especial para partilhar com eles, mas, na verdade, o que havia na sua mochila era apenas um pão velho com margarina e toda a sala que se acercara para provar de seu lanche, riu, cruel, de seu delírio.

A emoção de pensar que poderia, naquele dia comum, levar pão com salsicha e molho para a escola tinha deixado a infante excitada demais, então, em sua situação tão ignominiosa, considerara aquilo algo grandioso, digno de menção pública. Mas, as gargalhadas potencializaram a sua vergonha, se contrapondo de forma exagerada à sua inicial excitação. E, como já era de se esperar, se sentiu ridícula. Mas, o mais triste era perceber-se traída pela única pessoa com quem poderia contar: sua mãe.

Naquele dia, voltou para casa aos prantos, e, quando inquiriu sua mãe acerca daquela deslealdade, foi recebida com novas atitudes zombeteiras. Afinal, ela era muito boba se acreditava mesmo que poderia levar cachorro-quente para a escola, para sujar o uniforme já encardido de molho de tomate.


À parte daquelas lembranças, quando a cera de depilação reciclada cozinhou, a mãe de Pietra esperou que esfriasse um pouco, e tateando com a ponta dos dedos, começou a modelar aquela gosma que se tornaria uma massa dourada e firme. Esticava até que a massa alcançava mais de um metro, dobrava em camadas, esticava novamente, dobrava em camadas... As mãos fortes daquela mulher dançavam. Brilhavam os olhos da menina que sempre esperava a massa esfriar um pouco para poder manobrá-la também “posso pegar?”, e a mãe seguia concentrada, “posso pegar?” e a mãe em silêncio, “mãe, ei, mãe, posso pegar?” A mãe de Pietra, como quem é arrancada de um estado de torpor, com voz áspera e olhos vermelhos de cansaço e raiva, respondeu: “Ora merda, menina, vai pegar no chifre do corno safado teu pai e me deixa em paz! E deu-lhe um cascudo tão forte que a menina foi ao chão desorientada.

Como um cachorrinho enxotado, Pietra entendeu que não era dia de fazer colares com a cera purificada dos pentelhos das vizinhas, pegou sua faquinha de desbravadora e foi, com uma dor lancinante na cabeça, caçar minhocas para fazer sopa para seu gato, Tony Hell, à sombra de seu pé de palmeira. Há alguns dias já não fazia sopa para as bonecas, pois matou a todas elas com sua faquinha e as jogou no lixo quando descobriu que uma trazia um bebê de plástico na barriga.

Débora Lima é poeta e escritora. Autora dos livros:

O prato triste da discórdia (e outros

contos quase sempre tristes): Adquira!

Enquanto o instante existe (poesia): Adquira!

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