um conto por Lodônio de Poiri
Diante da parede violeta, o sofá, com sua tonalidade azul e pés marrons, agasalha, como de costume naquele horário, o homem da casa. Em outras horas, os insetos inquilinos salpicam-no. Mas, agora, estão sumidos. Até mesmo a cortina laranja está desabitada. O piso, a pouco encerado, expõe sua beleza. Turista talvez; admirada com o esplendor do chão, a barata desliza um percurso perpendicular ao sofá com velocidade de regozijo.
Sequer um minuto dera adeus, ela retorna com as asas frívolas embalando novo desfile. Alguns centímetros acima, dois olhos fixos observam a área próxima ao sofá. A feliz caminhante passa perto dos pés marrons. Uma pisada.
O mesmo homem que mata a barata é, após o nojo, acometido por inspiração poética e remorsos.
Eis que, sozinho na residência abandonada pela ex-esposa e filhos, inicia a declamação:
“De que vagas inúteis
Vieram os meus anseios,
Desejos, vontades e costumes?
Em que receita
Ensinaram a fazer
Um vil assassino?
Qual poção
Lançaram na minha gestação
Para que eu seja
Tão cruel e maldito?
Uma turbulência
Avassala meu âmago
E corrói meu conceito
Tão valorizado e exaltado.
Uma turbulência
Ressoa no meu istmo
E regurgita na minha península.
Uma turbulência
Ameaça minha altanaria
E condena minha conduta
Tão lembrada e afamada.
Uma turbulência
Rosna no meu ser
E resplandece na minha visão.
Suplico cegueira
Mas refuto instantaneamente
Pois castigos não são
Mágicas e mesmo se fossem -
Caso dignas e éticas,
Jamais promoveriam algo
Só para sanar meu ato débil.”
Alguns minutos depois... passos lentos e embriagados de tranquilidade movimentam outra barata. Displicente, não percebe a finada próxima aos pés marrons do sofá tampouco os olhos alguns centímetros acima. Uma batida de pés.
Em pé, o humano segue rumo oposto ao da barata, que penetra calma o território da cozinha.
Na porta da varanda, mordendo os lábios e exalando insatisfação, o humano encosta os cotovelos. Poucos transeuntes comprovam o feriado, a falta do que fazer, o vagar néscio. Dois passos em direção ao quarto, acompanhados do barulho da porta fechada com os impulsos do açoite, são rechaçados. O retorno devagar é regido pelo acocoramento e culmina em olhar inquiridor. A cadeira envernizada vai se tornando opaca e sumindo aos poucos enquanto o mundo é condensado em duas baratas dorminhocas. Parecem sonhar algo maravilhoso; tão cândido é o sono. Acordam. O humano, intrigado, permanece imóvel e silencioso. Inesperada, outra barata corre sob a cadeira.
Num ritmo rígido, o novo divorciado da cidade vai à mesa e alcança o poema. Um cuidado de mãe pontua o rasgamento. Com atenção, as estrofes são separadas e sobrepostas enquanto os versos aguardam, frios, a execução impetuosa do homem, que, cego pela ânsia de purificação do lar, refuta as respostas dispostas à visita por ele convocada. Conselhos pessoais são emitidos durante o jorrar dos papéis despedaçados ao lixo.
Após estribilhos turbulentos descarregados durante revirações no armário, um dueto é iniciado entre o sapato e a vassoura. Tendo o belo piso como palco e o sofá de tonalidade azul como camarim, o espetáculo, aclimatizado pelas paredes violeta, inclui em si, como refrães execrados, as baratas transeuntes quer sejam frívolas quer sejam displicentes. A canção entoada retrata passagens da história humana; e o seu título é simplório: “É fácil fazer a hecatombe”.
Na cortina laranja, os pequenos insetos assistem comovidos...
Lodônio de Poiri é poeta e escritor. Um epicurista anarquista e vice-versa
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