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  • Foto do escritorArmazém na Estrada

TÍTULO

um conto por Lodônio de Poiri



Sabe-se lá como está o céu quando se encontra enfurnado no departamento do subsolo.

-Seu demônio! Não quero titubeios. É verdade? Hein, sua merda...?

-Calma...

A mão coça o ombro, coça o braço, a cabeça, a barriga, a perna, o saco, a bunda e, finalmente, coça a boca.

-Mas que porcaria... êta mão que vai em tudo que é lugar...

-Até no teu...

-Olha a pornografia! Bunda-mole... Diga logo: é verdade?

-Calma... Tenha calma...

As mãos pegam o livro e amassam; torcem-no, contorcem-no, batem-no à mesa onde estão desenhados as vulvas e os pênis mais hieroglíficos da região. As legendas: a mãe de V... é puta!; você é viado porque leu esta viadagem; a arte de cagar mela o cu; quem foi o ignorante que escreveu aqui? Não é cu mas ânus; fui eu, vá tomar no ânus! (obrigado pela aula).

-É... Nervosismo agora não adianta mais. Deveria ter ficado assim na semana passada.

-Que já passou. Não somos arqueólogos tampouco historiadores. Deixa, então, os elementos do passado quietos.

-Mas eu não quero mexer no tempo. Eu quero que você diga a verdade!

-Calma... Tenha calma... A tranquilidade é uma qualidade.

O livro é atirado na parede. O choque e a queda são assistidos por olhos sem pálpebras. Mesquinhos órgãos que não querem perder um pedacinho da realidade; por leviana merda que importe.

-O livro só podia estar nas tuas mãos. O assunto é sexo!

-Não tanto. É uma coletânea de contos. Alguns com angulação religiosa, outros com alicerce filosófico... agora, por acaso, caiu aberto nas páginas intituladas “Orgasmo Hematófilo”...

-Vai enrolar o caralho! Diga logo a verdade.

-Calma... Tenha calma... A tranquilidade é uma qualidade. Depois, diz que o nervosismo está em mim.

Na coletânea: enquanto ela tremia de cólicas, em pé com pernas entreabertas; ele, admirado, adorava-a e banhava-se com o humor expelido pelo âmago dela. Em seguida, com a língua acariciou o hímen. Mapeando o espaço para que ela, depois da menstruação, com o grito banhasse uma nova caravana de hemácias, que assolariam os lábios trêmulos de dor, ansiedade e prazer.

-Nervos... Esqueçamos deles. Ou você diz a verdade ou vou te sangrar, sua peste!

-Que é isso...

-É um aviso! Depois do que aconteceu entre nós é inadmissível aceitar que você tenha feito uma canalhice destas. Vá lá, diga: é verdade?

-Calma... Tenha calma... A tranquilidade é uma qualidade. Como é que o nervosismo ainda está em mim!? Se bem que já estou com as mãos suadas...

A mão na revista. Um contato intenso. Mais um lançamento. Não chega à parede. Outra página exposta. Dentre as frases impressas: (Hanna Segal, W. R. Bion e H. Rosenfeld para o obituário de Melanie Klein) “Toda ciência busca a verdade. A psicanálise é única por acreditar que a busca da verdade é, em si, um processo terapêutico”.

-Você é muito imbecil, mesmo. Já vi que é verdade.

-Calma... Tenha...

-Se repetir mais uma vez essa babaquice: vou fuder contigo!

-É! Parece até que precisa... Estamos vivendo como se fossemos finados de morte cerebral. Os jornais comovem mais que a arte...

-Para de encher saco. Já sei que a sociedade é uma porcaria recheada de filhos-da-desgraça. Mas o que me importa, agora, é saber a verdade. Escutou!?

Ecoa o indesejável som do interfone perfurando o diálogo de forma incisiva e remodeladora.

-Que miséria! Faz de conta que é ilusão. Sequer há interfone no prédio.

-Não dá. È impossível acatar uma suposta realidade apresentada ou desejada quando se tem certeza do que é...

-Verdade! Então, fala!

-Vamos ao interfone. Depois, eu juro, digo toda a verdade.

-!?

-Só peço que não seja muito cruel comigo. Certo?

-Vamos ver o que é.

Ecoa, novamente, o som do interfone. O porteiro informa a entrega da encomenda. É preciso ir observá-la. As palavras descansam. A porta é aberta e assim persiste mais do que o tempo suficiente para passagem dos corpos, que não constituem resumos dos seres; a visão resolve comover o departamento, circulando-o e acariciando a tela suspensa, numa sensação de insuficiência para prosseguir. A porta é fechada.

-Por curiosidade: qual é o título da coletânea?

As mãos acolhem a encomenda num saguão vazio.

-Ih... não me lembro.

Um momento de contemplação resignada e considerada inútil.

-E a tela, qual seria o título?

-Hum... Olha, na verdade, não estou afim de pensar nisso.

Sorrisos cúmplices percebem o céu e as nuvens bem como os urubus que circulam parindo a dúvida entre a carniça e a chuva; além da certeza de que o departamento, com sua ciência, prosseguirá.


Lodônio de Poiri é poeta e escritor.

Um epicurista anarquista e vice-versa




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