um conto por Achel Tinoco
Miquita queria beijá-lo na boca. Ele o rechaçava temendo sua língua de vaca, seu bafo de onça, sua porção masculina. Apertava seu pescoção, dizendo: “Vira pra lá, desgraçado!”
Aos 20 anos, Jaime Aranha era um jovem comum, sem grandes atributos físicos, sem cabelos o bastante para penteá-los, sem objetivos na vida que não fossem os de viver dignamente na cidade grande, longe daquela roça imprestável da adolescência; longe da rigidez do quartel que nada tinha que ver com ele. Tão somente cumprira a obrigação cívica. Foi assim que no mês passado, chegou a Cidade Velha (bairro mais antigo de Belém do Pará), para se instalar à Rua de Breves, num quartinho ordinário, o único que achou do tamanho do dinheiro que trazia na maleta de couro, junto com duas mudas de roupa. Pensava conseguir um emprego estável que lhe garantisse o aluguel e as cervejas dos fins de semana.
Na primeira semana, procurou uma colocação no comércio, andou por tantas ruas e tantas praças, por entres prédios coloniais antiguíssimos, igrejas e catedrais. Nada lhe foi oferecido. Chegava para dormir tarde da noite. Mais um dia perdido. Sábado, entardecendo, depois de outra tentativa malsucedida na busca por emprego, sentou-se à porta de uma casa de posse, ao lado do barraco onde alugava o quarto, e pediu uma garrafa de cachaça. Preferia cerveja, mas se fosse cerveja, não seria só uma garrafa, e não estava em condição de gastar além de uma garrafa de cachaça. Fosse de jeito, convidaria uma daquelas “meninas” de saia curta, mostrando a polpa da bunda, seios fartos e sorriso dado, que se exibiam por entre as mesas do puteiro. Bebeu sozinho e afogou sua incapacidade financeira até se ver chorando no fundo do copo. Levantou-se trôpego, bambeou de um lado para o outro, sentou-se novamente. As pernas não lhe obedeciam. O rapaz vestido de branco, todo de branco, do sapato ao chapéu, que o observava da mesa vizinha, correu para ampará-lo. Enlaçou um braço do bebum ao seu pescoço e o levou de muleta pelo outro braço, como um boto cor-de-rosa leva a moça mais bonita em noites de lua cheia ao fundo do rio para engravidá-la, acomodando-o no leito do seu quartinho desencantado.
Jaime não viu o domingo passando, a cabeça girava sem destino, tampouco se lembrava do “amigo” que o trouxera para casa ontem à noite. Viu-o na quarta-feira quando chegava da rua, sentado no batente da casa de posse — ou puteiro —, a observá-lo, como se possuísse a solução de todos os seus problemas. Menino da roça, escabreado, sabemos como é, não conhecia as modernidades da cidade grande, menos os homens que faziam papel de mulher. Para ele homem era homem, mulher era mulher, tudo simples e celestial como Deus os criara. Incutidas estas observações na cabeça pelada, Jaime viu-se impelido a agradecer ao companheiro. Depois de cumprimentá-lo com um aperto de mão, de sentir a textura fina de suas mãos delicadas, as unhas pintadas, a voz nasalada passada a ferro, encolheu-se nas pretensões imediatas de considerá-lo amigo, preferindo que fosse companheiro, ou um vizinho trajado sempre de branco.
Miquita sentiu-se prestigiado e envaidecido e orgulhoso e esvoaçante:
— Nem precisava me agradecer, amor, tô aqui pra isso!
Jaime sorriu por entre dentes para ninguém ver.
— Pode contar comigo, pro que der e vier, entende? — piscando-lhe o olho esquerdo.
Decerto, não entendeu nem imaginava que Miquita ficasse tão ousado de repente. No dia seguinte, chegou-se qual fosse seu melhor amigo e não apenas companheiro, como ficou determinado na cabeça matuta do outro, ontem à noite. Disse a Jaime que as meninas eram todas suas, portanto que ele, Jaime, se servisse da que melhor lhe agradasse. Ora, do jeito que andava a matar cachorro a grito desde quando dera baixa do Exército, qualquer uma estaria em boa medida. Na verdade, Miquita era uma espécie de garoto-propaganda da casa, gerente, cafetão, tudo menos dono ou proprietário das meninas da vida. Pelo seu lado, Jaime pensou que o cassirica (como se chamava “viado” no quartel e também nas travessas da Cidade Velha e no cais do porto) estava montado na grana e lhe teria alguma serventia acaso não encontrasse efetiva colocação. De trabalho, entenda-se. Agora, Miquita não tinha compostura para com ele, chamava-o de “amor, bofe, gostoso, qualquer dia ainda lhe pego com as calças na mão”. Passando daí, tornar-se-ia impróprio, sem vergonha, desrespeito, Jaime pensava, mas sem botar nele cabresto nem rédea que o caso requeria.
Miquita avançava na direção dele:
— Ai, Jaiminho, vem passar a noite comigo, garanto que você não vai se arrepender. E nada mais lhe faltará — dizia a ele, dia sim, dia sim também.
— Toma vergonha, safado! — Jaime resumia-se a dizer, já entendendo a engrenagem dos sexos misturados numa mesma pessoa, sempre com aquele sorriso para ninguém ver.
A cachaça já não lhe fazia a cabeça, como se costumava dizer naquelas ruas de pedra por onde andava a pé, procurando trabalho, porta dentro da casa de posse, das meninas vadias, dos malandros da esquina, das velhas corocas. Miquita dizia a Jaime que ele não bebia e comia do bom e do melhor porque não queria:
— Estou aqui pra satisfazer seus desejos, amor — repetia, cheio de jeitos e trejeitos. — Basta você provar do meu “tucupi!”
Um mês. Um mês exatamente. Ouviu um psiu. 3h37 estava apontado no seu relógio Orient de mostrador azul, que não valia uma tigela de açaí, ao chegar do mercado Ver-o-Peso, às margens da Baía de Guajará, onde tomara de uma mandingueira o preparado de ervas com pedaços de animais, “Chama Dinheiro”, para resolver sua crise. Jaime estacou diante da porta de compensado e olhou para trás. As carraspanas de há pouco não o deixaram focalizar com clareza a cara fresca de jega permanentemente no cio, de uma que ele montava dentro das roças de cacau nativo. Mas sabia quem era aquele a infernizá-lo: Miquita. Que se danassem os ensinamentos, os preconceitos, as leis, os cacetes! Iria tomar o dinheiro daquele cassirica, filho de uma égua. Pecado maior seria morrer de fome. Voltou-se por cima do rastro, cercou o pai-de-santo:
— Então, como vai ser? — disse com cara de macho aquartelado.
— Ai, amor, estava a sua espera.
Miquita rodou sobre os tamancos de madeira que usava, arreganhou o sorriso nos lábios de índio, puxou-o pela mão para dentro da casa. A casa festiva estava fechada fazia 37 minutos. As meninas haviam-se recolhido aos respectivos lares, às ruas, aos programas, tanto fazia. Melhor assim, Jaime foi pensando enquanto caminhava atrás dele, mas já se desvencilhando de suas mãos suadas, imaginando se algum dos colegas fardados o visse naquele entrelace de compadres a uma hora daquelas... Fosse então como um ferrolho na tranca, sem intimidade maior que a ferrugem azeitada do ato em si: arriar as calças, fechar os olhos, abrir a porta, depois receber a paga pelo serviço, o único que arranjara em um mês. Quanto teria a receber mesmo? Atentou somente agora para o fato de não ter combinado o preço do intento. Miquita não estava preocupado com essas miudezas, fez comentário algum, adiantou-se, acendeu uma luz avermelhada, empurrou a almofada de cetim barato de sobre o sofá da sala para longe e sentou-se agradecido. Levantou-se um minuto após, foi até a mesinha de canto e ligou a radiola na tomada, apanhou um dos muitos discos da prateleira e o pôs cuidadosamente sobre a plataforma, puxou o braço e adequou a agulha à linha da faixa preferida: Amada Amante, de Roberto Carlos.
— Senta aqui, amor, não seja tímido! — apontando com a munheca quebrada o sofá desmantelado atrás de si.
— Pare de me chamar de “amor”, porque não sou seu amor.
— Está bem, amor!
Miquita postou-se à frente dele, de pé, e num giro rebolativo foi arriando a calça branca até aos joelhos, a cueca branca acima do gancho, as mãos espalmadas sobre o braço do sofá, os dentes travados, a natureza retesada. Como se o bofe não tomasse iniciativa alguma, ele olhou para trás para saber a opinião dele sobre os seus atributos. Jaime estava indignado consigo mesmo, nunca imaginara o dia que se iria entreter com um cassirica. Nem no deserto amoroso do quartel. Examinou, sob a luz pouca, a bunda mole do viado de quatro à sua frente, todo se bulindo, e não sentiu movimento abaixo do umbigo que não fosse o do estômago revirando-se e o da repugnância pessoal. O falo estava mudo e incomunicável. Miquita também o percebeu contrito, olhou-o de novo por debaixo das pernas, mediu-o mentalmente, volveu-se num passo de balé e abocanhou-o, friccionou-o, cochichou-o. Nada. Foi então que Jaime fez-se de boto desbriado, sonhou com sua montaria de dentro das roças enquanto bandeirava, quebrava e descaroçava as cabaças de cacau; noutra que comia em dias de folga do quartel e que lhe custava todo o dinheiro, tanto que agora estava puro. Tanto que Miquita fungava amiúde:
— Ai, amor, ai, amor, ai, amor! — mexendo a calda peluda e revirando a cabeça para beijá-lo na boca.
Jaime apertou com mais força o pescoço grosso do cassirica:
— Vira pra lá, desgraçado!
Faltava receber o dinheiro e ir embora correndo lavar as vergonhas.
— Ai, amor, não sei como vou lhe falar, mas não tenho dinheiro, estou mais duro que tarado em noite de núpcias — terminando de se recompor.
— Desgraçado!
— Não fique assim, amor, vou lhe dar algo mais valioso — andou dois passos para trás, para onde a radiola ainda repetia a mesma canção, apanhou de sobre a mesa a coleção incompleta dos “bolachões” de vinil do cantor Roberto Carlos e a trouxe para dar a Jaime como pagamento.
Jaime bateu a porta atrás de si com tanta força, que estremeceu o pé direito da casa. Para quem iria vender os discos?
Pela manhã, ao sair para o Centro, avistou Miquita rodeado de mulheres à porta da casa de posse. Não ia cumprimentá-lo, mas eis que ele o apresentou às meninas:
— Este é Jaiminho, o meu bofe!
Achel Tinoco é poeta e escritor.
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