um conto por Roberto Minadeo

Um diplomata costuma ser invejado pela vida que leva: ganha bem, tem como papel inerente ao cargo o participar de inúmeras festas e recepções, viaja muito e a cada dois ou três anos é transferido – vindo a conhecer o mundo inteiro ao longo de sua carreira.
Porém, há os ossos do ofício. Um deles: de tanto morar fora do país, perde-se o contato com a língua falada na Pátria. Filhos de diplomatas, que trocam de idioma e de escola com grande frequência, não chegam a dominá-la.
Um diplomata retornou ao Brasil após longos anos no exterior e foi a um jantar. Deixou o filho de oito anos e foi a outro compromisso, marcando horário de retornar para buscá-lo.
Alguém disse ter comprado um carro “zero bala” e começou a falar do veículo novo, cheio do entusiasmo natural de alguém da classe média que apenas pode se dar a tal luxo a cada cinco ou seis anos. Esfuziante, não cabia em si de contente para falar das inúmeras maravilhas que o seu novo bólido propiciava.
O menino ficou atordoado com a expressão “zero bala”, entretanto, em meio à alegria geral trazida pelo exultante comprador, ninguém se deu conta. Tão logo houve a possibilidade, alguém elogiou o poder de compra do feliz possuidor do veículo, e utilizou a expressão: “está com bala na agulha”. Foi demais, toda a capacidade de compreensão cultivada nas melhores escolas do mundo não logrou esconder a mais completa ignorância ante a conversa.
A esposa do comprador do veículo percebeu que algo não estava bem com o menino, devido à sua fisionomia geral de ponto de interrogação e de crescente alheamento ao ambiente. Dirigiu-se a ele, ouvindo:
— Não entendi nada!
Com toda a paciência disponível, a esposa, solícita, inquiriu:
— Como assim, nada?
— Essas balas todas!
Foi a vez de nenhum dos presentes entender qual seria a dúvida. Redobrando o grau de solicitude, a esposa do comprador do carro novo pediu maiores detalhes sobre o que não estava claro, ouvindo um sussurrar:
— ... já falei, as balas... zero bala... bala na agulha... de qual guerra vocês estão falando?
Todos entenderam e se esforçaram por conter o riso. Foi preciso contornar a situação, para evitar ferir as suscetibilidades do filho do diplomata, ao apontar com crueza sua ignorância em assuntos tão básicos. Um olhar encorajador do comprador pediu à esposa para continuar as negociações de paz, o que foi feito:
— Por um lado, o carro “zero bala” é um veículo novo em folha.
— Ah! Entendo! Zero por ser novo! Bala por ser um carro, cheio de coisas redondas, como os quatro pneus...
A este ponto do diálogo, os menos pacientes tiveram dificuldade em disfarçarem o riso, e desviaram o olhar de nosso pobre menino, para que este não percebesse o quão longe andava das coisas mais prosaicas da vida. A esposa do comprador do carro – já quase maldizendo o marido por falar com tanta ênfase sobre a tal aquisição – respirou fundo, e tentou avançar:
— É uma expressão idiomática, é impossível traduzir palavra por palavra. Simples assim, zero bala tem o mesmo significado que “novo em folha”, disse ela, enfatizando cada sílaba, e dirigindo um olhar súplice ao marido, para que este assumisse as explicações, antes que ela perdesse a paciência.
O marido aproveitou a brecha:
— Os revólveres possuem espaço para as balas, então, se carregados, se usa a expressão “bala na agulha”. Também alguém com dinheiro passou a ser alvo do termo, não tenho a menor ideia da origem disso.
A esposa, aliviada, resumiu:
— Então “bala na agulha” tanto pode ser alguém que está com um revólver preparado para atirar – o que é raro, pois as pessoas por aí não andam armadas – quanto pode significar estar na posse de dinheiro, muito ou o suficiente para alguma compra, a depender do contexto.
O filho do diplomata concluiu:
— Ah! Entendi, então quem não tem dinheiro também não pode ter revólver...
Todos se retiraram, o jantar foi encerrado e os anfitriões permaneceram no mais absoluto silêncio até a chegada do diplomata para buscar o filho.
Roberto Minadeo é escritor.
Autor de 'Sonhos Fulgurantes', contos (Amazon, 2020)
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