um conto por Débora Lima
Resolveu naquele dia que não pintaria mais os cabelos, decidiu que envelheceria naturalmente. Como cada erva daninha no campo, cada fungo, cada peixe-demónio nos abismos dos oceanos. Continuaria cumprindo seu papel na natureza, seguiria criando os filhos feios que tivera de um amor antes boêmio que ia se acomodando com o tempo à forma burguesa que lhe dera. Era como se a poesia da existência já não fosse um sol, mas uma luz azul levemente bruxuleante, tênue, porém necessária.
Mas, a poesia real, era a que mais marcas lhe trouxera, era a poesia que feria, era a poesia que era fera. Não exatamente por ela, mas por aquele que se singularizara a ponto de transferir-lhe as angústias.
Seu marido, que era poeta, se sentia frustrado, a angústia dos homens ocos de Elliot há muito o alcançara. No fundo, era um refém da poesia. Embora a alegria estivesse em senti-la surgir entre os escombros de uma mente abarrotada, não conseguia evitar desapontar-se por não ter leitores, por não encontrar, dentre seus pares, pessoas que ainda amassem essa sutil prova da existência da alma humana. Já não era de versos que os homens sentiam fome, já não era na beleza que buscavam os meios para preencher o vazio da vida cotidiana, viviam anestesiados pelas imagens dos corpos cada vez mais irreais, pelos vapores do álcool, pelos vapores do medo. E aquele homem que nada mais era capaz de dar ao mundo, sentia-se inútil.
Ainda assim, ela sabia que seu companheiro de anos acreditava que “Se você vive correta e integralmente poderá encontrar um significado tão profundo que o protegerá até mesmo do medo da morte.” E, embora desanimado, não estava abatido. Sabia que a solidão é como um cão, um companheiro inseparável, mas que deve ser mantido do lado de dentro da casa ou as pessoas que tornam, do lado de fora, a vida possível seriam seu banquete noturno e, passada a noite, só ele restaria, rondando cada espaço em qualquer dos lados.
Embora sua forma já não fosse a mesma, sabia fazer-se desejável por ele. Embora a força dele já não fosse a mesma, continuava perfeitamente amável para si. Seus olhos, sob os óculos, possuíam uma luz triste que a encantava e a forma de seu corpo pouco simétrico e nada atlético, conferiam segurança, não só pela falta de cabelos em sua cabeça, mas também pela circunferência de sua pança. Um ser que para uma jovem estranha nada seria senão desprezível, mas para ela, em sua idade crepuscular, tinha o aspecto assimilado do amor derramado no mundo.
Por isso, tanto lhe doía aquele ar desamparado na face daquele que lhe era abrigo. Por isso, se entregou à ideia ancestral de injetar-lhe ânimo. E, apesar do pouco espaço que restava em seu regaço, porquanto ocupado por sua barriga imensa de cerveja, sentou-se em seus joelhos e sussurrou em seu ouvido:
─ Quero escrever poesia!
─ Minha filha, você não vê o quanto pesa meu fardo? Não queira ter sobre si o que me tem posto tão cabisbaixo. Você nunca se interessou... Não flerta, não brinca com as palavras, não sente a dor do mundo, quando ele, em versos, resvala.
─ Nunca ousei, querido, pois a poesia eu via nas flores do nosso jardim, no despertar dos nossos filhos de manhã, no modo como eles sorriem para mim. Mas, agora, percebi que posso brincar de poesia com você. Vamos escrever juntos? Vamos?
─Não sei, não acredito que possamos, acho que você terá dificuldade...
─Tente!
─ Se eu não gostar você vai ficar magoada!
─Não, não ficarei magoada, mas você ficará desapontado...
─ Não, eu não poderia ficar magoado por você, minha eterna musa, desejar ser também bardo.
─ Gostei, até por que, meu menestrel, de ser musa já cansei. Meu corpo está derretendo, meus cabelos se dissolvem, sua cor some no vento, enquanto meu desejo escorre por entre meus dedos cansados...
─Impossível ser isso verdade. Se quando te vejo a alegria vem orar em meus olhos, que ardem, pelo fogo dos teus cabelos e o cheiro do teu pescoço, que, cada ano que passa, se torna mais longo e gostoso, enquanto sustenta entronizada tua cabeça formada por mundos de pensamentos misteriosos para mim.
─Ao que me parece, querido, já os versos nos abraçam, ao nosso juízo enlaçam e arrastam à unidade jamais antes conhecida, pois pensei que era feliz, mas agora percebi, sequer sabia o que era vida, enquanto não conhecia o prazer buscar em versos verdes, força para suportar viver, assim: madura.
─Assim você me enlouquece, me oprime, me adoece e como a droga mais pura, quando quase me mata, me cura, quando encontro a certa medida para retornar à vida. E já sou jovem de novo. Você me aliviou o fardo, minha musa e meu bardo.
─Ai! Que delícia, repita!
─Você arrancou o meu fardo, minha musa, meu bardo.
─ Repita, pois sinto que ardo!
─Minha musa, meu bardo!
─De novo, pois estou em fogo!
─Minha musa bardo!
─Repita, amor, que emudeço!
─Musa bardo!
─Repita, que estou pronta!
─Meu amor, como eu te agradeço!
─Não pare!
─Musa bardo, musa bardo, musa bardo!
─Sim, amor, que gostoso...
─Musa...
─Ai!
Débora Lima é poeta e escritora. Autora dos livros:
O prato triste da discórdia (e outros
contos quase sempre tristes): Adquira!
Enquanto o instante existe (poesia): Adquira!
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