uma crônica por Waleska Barbosa,
escrita especialmente para o fim de 2021 em Armazém na Estrada
É chegada a hora. De fazer o tal balanço. Eu fugiria dele como dizem que o diabo faria com a cruz. Mas foi assim que recebi o pedido para o texto e isso me pareceu um bom começo. Em tempos de inspirações poucas. Balanços muitos.
Busquei o significado da palavra. Também na esperança de que algo ali parecesse inovador. A despeito dela, a palavra, parecer comum e tão bem apreendida no seu conteúdo.
A primeira informação me fez brincar internamente – com um misto de raiva e desabafo inverossímil – substantivo masculino. Mas só podia. Fosse feminino. Substantiva. Tinha me deixado menos sujeita às intempéries do ir e vir.
Deslocamento. Em relação ao centro de equilíbrio. Eu corpo-território. Eu pele escura. Eu-mulher. Eu-mãe. Eu-dona de casa. Eu-noturna. Eu-boêmia. Eu-embriagada. Eu-dança. Eu-samba. Eu-amizade. Eu-silêncio. Eu-sombra. Eu-implosão. Eu-paralisada. Eu-jornalista. Eu-escritora. Eu-pensante. Eu-ignorante. Eu. Vazia de todo. De tudo. Eu-deslocada. Eu-desequilibrada. Eu-descentralizada. Balançando tal lençol deixado para secar em varal de corda. Transparente. Meio sem razão de ser. O lençol.
Balouço. Quantos eu teria dado nesse ano que segue rumo ao final de sua trajetória como marca de tempo. Quantos balouços? Eu. O próprio balouço. João-teimoso – caindo e me reerguendo para susto da infante eu. Queria tanto só cair. Por vezes. Queria subir mais rápido. Para susto da infante eu. Noutras vezes, nem queria ter sido impelida a envergar. Eu firme. Para susto. Para alívio. Para desfrute. Da infante eu.
Oscilação. Disso aí, estou escolada. Mais do que quando passei por média nos tempos outros. Como oscilei, deusas e deuses. Como desejei estar ancorada quando estava em queda. Como desejei parar a queda e ficar pêndulo, sem, no entanto, encontrar chão. Como desejei não ter oscilado. Como desejei congelar os tempos de energia, vigor, alegria, torpor, esperança. Como esperei. Esperancei. Acordar com a energia, vigor, alegria, torpor, esperança. De ontem.
Ao contrário, tive que repetir. Só por hoje. A vida do agora. Estar no presente. Não lamentar ou querer me agarrar ao passado. Não me assustar ou querer antecipar o futuro. Eu. No agora. Pleno. O agora. Eu. Plena. De toda a fertilidade. Do agora.
Prenhe de um vir a ser que apenas tivesse compaixão. Tolerância. benevolência. Amor. Por mim. Posta em seu colo. Aninhada em seus panos de rede. Pendurada. Pelos punhos. Sorrindo. Inocente e crédula. Seria mais fácil balançar assim.
Mas estou aqui fazendo balanço de coisas, de tempo que está atrás, de acontecimentos, de pessoas, do que não foi, de ausências, de lampejos, intermitências.
Balanço de mais um ano sob pandemia. Perdi o número de mortos. Perdi o número de mortes. Perdi as estatísticas que me fazem, tantas vezes, balançar as mãos para jogar fora as lágrimas. Pelas mulheres vítimas do feminicídio. Pelas mulheres pretas – com mais desemprego, menos salário, mais vulnerabilidade. Um governo genocida como pano de fundo. O meio ambiente indo pelos ares. Nos fazendo ir da revolta para a ira e desta para a incredulidade. Direitos sociais perdidos. Afundados. Povos originários dizimados. E a luta de quem luta. Tremulando bandeira. Que nos faz antever balanços mais festivos.
Eu. Olho para trás. Vejo uma rede na parede de casa. Desejo pendurá-la. Sentar-me ali. Altear os pés do chão. Dar impulso. Ir e vir. Seria mais fácil balançar assim.
Waleska Barbosa é escritora e jornalista.
Idealizadora do 'Julho das Pretas que Escrevem no DF'
Autora de 'Que o nosso olhar não se acostume às ausências' (Arolê Cultural; 2021)
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