um conto por Lodônio de Poiri
(ou O fruto das discrepâncias)
Ele estava convicto. Inabalável.
Assobiava e tamborilava no volante quando avistou o homem pedindo carona. A velocidade abaixo dos 40 km/h facilitou a parada do veículo.
- Vai para onde?
- À feira, antes da cidade.
O vento úmido e as nuvens acinzentadas anunciam chuva.
- Entra.
- Mas tenho alfaces e couves para levar. Pode ser?
Ele sai do carro; abre o porta-malas. O carona guarda as folhas.
A rodovia que interliga as comunidades rurais ao balneário é pouco movimentada; favorecendo a velocidade. Mas ele prossegue dirigindo abaixo dos 40 km/h. Em silêncio. O carona também calado.
As fazendas vão se apresentando em grupos. Primeiro, as agrícolas; segundo, as pecuárias; terceiro, os hotéis-fazenda. Depois do terceiro grupo de fazendas surgirá a feira livre. Logo após, a cidade – que antecede o balneário; nele, a efervescência turística.
- O senhor tem muita pressa?
- Não muito. Já estou agradecido pela carona. O ônibus ia demorar...
- Tenho que entregar um bilhete da minha mãe ao meu pai. Ele está nesse hotel-fazenda do evento...
- Ele trabalha aí?
- Não.
- Hum... O pai do senhor deve ser importante.
Ele nada comenta; segue viagem.
O carona, como todos os humildes moradores da região, sabem que aquele hotel-fazenda está reservado para o encontro de políticos, empresários e intelectuais vinculados ao novo projeto econômico de tecnologia rural do Ministério da Agricultura.
Na portaria do hotel-fazenda, apresenta a credencial providenciada pelos amigos.
- Fique tranquilo. Não vou demorar. O senhor pode esperar no carro.
- Tudo bem. Eu só tenho a agradecer pela carona.
O carro circula o estacionamento inteiro por duas vezes.
- Eu queria uma vaga sob o prédio. Para que o senhor não fique ao sol.
O auditório de congressos do hotel-fazenda é suntuoso. Um único andar. Sendo que o térreo é todo reservado a estacionamento. São milhares de metros quadrados construídos.
Ele para o carro próximo aos elevadores, no centro do prédio.
- Vamos fazer o seguinte: enquanto eu vou procurar meu pai, o senhor vai até o segurança e diz que o carro deu defeito. Por isso está parado em local inadequado.
- Mas... do jeito que estou vestido, o homem nem vai querer escutar o que tenho a dizer.
- Pode ir tranquilo. Diga que trabalha para um dos participantes do evento.
Ele sai do carro. O carona, constrangido, também.
Ele faz um aceno ao carona e insinua caminhar. Para. Deixou a chave cair. Agacha-se. Demora um minuto sob o veículo. Levanta.
- Aproveitei pra observar o defeito. – grita sorrindo.
Entre risos, o carona manifesta entendimento. Feliz e vaidoso com sua perspicácia, o carona vai ao segurança.
Ele continua convicto. Embora ansioso.
Caminha para uma das extremidades do prédio. O carona já conversa com o segurança; ele se afasta do prédio, rumo à portaria do hotel-fazenda.
- Bom-dia. O senhor permite a observação da paisagem na rodovia? Dizem ser muito bela.
- Com certeza, doutor. À vontade.
Ele caminha devagar. As mãos se unem entrelaçadas pelos dedos. Na rodovia, ele pensa no humilde lavrador a quem deu carona. Paciência. Ele está convicto e inabalável.
Ainda com as mãos unidas, estende os braços ao alto – espreguiçando-se.
O que a mídia, fatalmente, vai considerar ato terrorista com grande perda; ele aprecia como um item esplendoroso da paisagem: a flor da explosão desabrochando suas pétalas fumegantes.
Lodônio de Poiri é poeta e escritor. Um epicurista anarquista e vice-versa
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