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  • Foto do escritorArmazém na Estrada

DIMENOR

um conto por Erica Sakaki


Três e quinze na rodoviária. No banco descascado do posto do Juizado de Menores, dedos tortos, vacilando, Dona M. folheia um caderno velho, cheio de rabiscos. Procura não sei o quê.

A tarde modorrenta escorre lenta e insistente, fazendo um frio abafado. Tempo de chuva preguiçosa.

O funcionário do bigode, mão na barriga, enxuga a testa cansada e a encara, esperando.

Nada ainda.

Ouvi a outra mulher dizer ao comissário: "Ah, alguma coisa estranha tem, o menino não ia fugir de casa nove dias, pra viver com fome, dormindo na rua; o segurança pegou ele esmolando, perturbando os passageiros."

Cheguei no balcão nesse exato momento, em que os três cercavam o garoto, mandando ele falar a verdade.

Demorei um pouco pra prestar atenção; apenas interessada em ser despachada rapidamente na minha demanda. Estava sem almoçar, apertada pra fazer xixi, barriga roncando.

"Fale a verdade, o menino disse que apanhava muito."

Ela desiste do manuscrito ensebado. Garante com medo: "Não senhor, doutor. Levava só umas tapas pra tomar jeito de gente... castigo de criança.”

"Pela primeira vez percebi ele ali: rostinho assustado, olhar molhado, roupa encardida. Pequeno pra idade, magrelo. Acuado. Meu coração deu um pulo no peito e apertou. Lembrei logo do meu filho que deixei entusiasmado em casa às voltas com mais um brinquedo novo. "V., porque você não tá indo pra escola?"

Fitando o chão, fiapo de voz:

"Tem aula não..." Aí me encarou. Pedia socorro?

O comissário encostou em mim, balançou a cabeça:

-Tá vendo, doutora? “Dimenor”, não tem escola, não tem comida, não tem atenção. -Aduziu importante-: Isso é problema de "desfragmentação" familiar... esse ano retomei meu curso de Direito, só falta três semestres, inclusive já conversei com dr. D., desembargador federal, conhece? Homem porreta, ele vai me ajudar no TCC sobre esse tema...

Continuou:

"Isso aqui é toda hora. A mãe não trabalha, sustenta uma "ruma" de filhos com uma bolsa família só, o companheiro da vez, que já não é o pai toma cachaça e senta a mão nos moleques.

A criança vê tv, quer alimento, quer tênis, quer celular... E quem dá? O tráfico. Vira tudo bicho solto. Vapor.

O menino quer ter as coisas. É normal de gente querer, a senhora não acha?”

Nem me deixa responder e dispara:

“Dona M. converse com ele, bota pra vender um amendoim, um picolé...

Como é que uma criança dessa que não tem p... nenhuma na vida não pode trabalhar? E vai fazer o quê? Ser avião? Não entendo essa lei”.

Eu resolvo perguntar:

A senhora mora aonde? Itinga? Não tem algum projeto social lá não? Esporte? Música? Arte?

O barrigudo responde fazendo mofa, como se eu fosse de outro planeta: Sabe de nada, inocente!!! Que mané projeto, minha senhora? O Brasil acabou, quebrou, faliu. Olha esse Juizado, olha nós; aqui não tem nada, zero estrutura, telefone quebrado, sem carro, sem computador, sem material... venderam o país. A gente trabalha é na ousadia! E encurta a conversa:

“Dona M. assine aqui. Vou liberar o guri porque ele precisa tomar banho e se alimentar. Nove dias dormindo numa maloca. Vá, meu filho, com sua mãe”.

V. tropeça indeciso na direção da mãe e eles se abraçam toscamente, duros, sem encaixar direito. Choram os dois. Dores presentes e futuras.

Vejo a cena com meu coração ervilha...

Ainda ouço a outra mulher aconselhar: vá trabalhar, juntar seu dinheiro, pequeno, não escolha a rua não que ela te engole, isso se não for internado na Fundac pra viver com tudo de ruim. Eles te mastigam, te moem, você vira bagaço. Resto de gente. Se saia!!!!

Olha com ameaça a genitora:

“Se alguém de sua família lhe judiar, pegue um ônibus e venha aqui me dizer. Coloco na viatura e levo pro DERCA pra aprenderem o que é bom...”

Meu coração de novo me trai. A garganta dá um nó. Marejo. Sinto pena, impotência, vergonha, raiva, desconforto. Não ia fazer nada, como de costume. Mas hoje o calo doeu. A mão tremeu. Abri a carteira e dobrei 50 reais no meio. Boa merda. Quando ele passou pela porta eu disse, vá comer. Ele agradeceu forçando riso. A mãe de olhar comprido na cédula. O comissário nem piscou: “lanchar nada. Guarde o dinheiro pra seu celular.”

Silêncio.

Saí na chuva pesando mil quilos.


Érica Sakaki é trabalhadora do TRT5, Oficiala de Justiça,

mulher, mãe e apaixonada pelo mundo da escrita.

Página do Instagram: @palavradefuracao

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