um conto por Lodônio de Poiri
um texto acolhido pelo arquivo numa
noite comum
“Abraçado a todo o meu rancor”-
João Antônio
“Abrigo da minha dor por te amar”- Fred Zero Quatro
O sorriso escorreu caldoso com molho de tomate. A pizza no estômago. A lágrima brotou no pasto fértil dos olhos. A fumaça na garganta. O corpo num frenesi escolheu ficar ereto. O desejo no instinto. Algo aconteceria, sabiam os amigos.
A mesa quadrada propagandeia certa marca de cerveja, mas eles bebem todas. A mesa, com seus pés formando um x, delimita e unifica os amigos. A mesa em lilás inusitado atrai atenções diversas. Um automóvel passa próximo.
No bar da praça estão na mesa da calçada lembrando os casos interessantes. Súbito, a presença. O susto no soluço que ressona peregrinando no ambiente.
Foram as pupilas no automóvel: quem os avistou na mesa. Agora, os corpos estão próximos à mesa e distantes do automóvel. As pupilas exalam o sarcasmo irradiante na calçada de pedras cinza e de matinhos verde-claro com alguns dejetos de beberrões.
Na mesa do fundo do bar um casal exalta o desejo através dos lábios e das mãos que se pervertem nos ouvidos, nas costas, nas coxas e nas genitálias. É perversão aquilo que vemos, queremos fazer, e não podemos.
Daqui da varanda, vejo: a praça está repleta de jovenzinhos que não têm ocupação. No meu tempo não era assim...
As pupilas sarcásticas guiam os corpos saídos dos automóveis. Esposa acompanhada pelas amigas é sempre esposa acompanhada pelas amigas: divórcio nos correios. Mensagem depositada com pressa. E angústia...
Os inveterados amantes da mesa de bar não se apavoram com copo estralado. Basta língua para a situação adversa: este satélite do paladar circula dinamicamente em qualquer espaço e para qualquer necessidade.
Copo lambido: está na hora de atuar. As boas esposas gostam de novelas.
O sorriso escorreu caldoso com molho de tomate. A pizza no estômago. A lágrima brotou no pasto fértil dos olhos. A fumaça na garganta. O corpo num frenesi escolheu ficar ereto. O desejo no instinto. Algo aconteceria, sabiam os amigos.
Caminha tranquilo até os pés da esposa. Um beijo. Um tapa.
O aparelho de som silencia. A praça, quieta, observa. Meio metro é a distância entre os corpos. Mais de cem metros é a distância para com as crianças, que na casa degustam o catarro.
O automóvel se move. As amigas rejeitam assistir baixaria. Os dedos médios não se mantêm, nem podem, com os dedos mindinhos. Cidade pequena a nossa, em que os dedos às vezes se deixam estar numa só mão.
- as minhas amigas foram embora, notou? Algum outro homem casado está sentado aí, nessa mesa? O tapa não deve ter doído, né? Já está acostumado... As crianças estão lá em casa: doentes! E o pai, bebendo com os amigos... Até parece que pode. Toma vergonha na cara, homem. Guarda teu dinheiro para cuidar dos teus filhos.
A menina dos olhos dela é raivosa. Ele esboça uma palavra na face dos que nada têm a dizer.
- não abra a boca!
Ele, ventríloquo veterano, exprime:
- as amigas são falsas burguesas que te aturam. Os filhos são doentes porque assim nasceram. Eu... sou cachorro por ser descarado e largado. Mas gosto muito de você. Isso não dá para negar.
Tremem as amígdalas. Nos lábios rígidos, arrependimento por sempre permiti-lo falar.
- em casa a gente acerta. – diz, com voz de esposa preocupada com os filhos.
As novelas nem sempre merecem audiência. Porém, o público está acostumado.
Um novo pedido de pizza. Um novo cigarro acesso. Os hormônios apascentados guardam o tesão para mais tarde. Os amigos decepcionados lamentam a ausência de algum acontecimento.
- é sempre a mesma coisa. Nossa vida não deve interessar a nenhum escritor... – ele explica.
Penso em rasgar o texto...
Conservo. Todavia, como diria meu avô, “retirar-me-ei da varanda”.
Lodônio de Poiri é poeta e escritor. Um epicurista anarquista e vice-versa
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