por Moisés Morais
Por que, apesar da maioria da população brasileira ser negra, representações dessa população não têm sido eleitas em uma proporção correspondente para cargos nos poderes Executivo e Legislativo no país? Essa é uma questão que, ao suscitarmos, nos leva a constatação de um flagrante caso de sub-representação politica em nossa sociedade. E buscar respondê-la nos traz a percepção dos desdobramentos de elementos ideológicos forjados no passado para justificar a marginalização dessa parcela da população do acesso a direitos políticos.
Um desses elementos tem origem no nosso passado colonial, quando os africanos escravizados eram associados ao trabalho manual e ao uso da força física empregada na produção. A sua capacidade como ser pensante era omitida, apesar de dominar saberes sofisticados sobre agricultura, pecuária, mineração, arquitetura etc, e que foram fundamentais nos ciclos econômicos desenvolvidos nesse período, como realçou Henrique Cunha Júnior. Desqualificar povos da África como sujeitos sem racionalidade era um discurso ideológico amplamente mobilizado para que fosse aceita socialmente a escravização de seres humanos por outros seres humanos. A abolição da escravatura não trouxe rupturas definitivas para esse problema. As teorias raciais, que ganharam fôlego na segunda metade do século XIX, atualizaram essa diretriz ideológica, alegando que os indivíduos com características negroides seriam inferiores biologicamente, desprovidos, por exemplo, de capacidade intelectual. Desse modo, trazia como o outro lado da moeda o mito da superioridade racial branca.
Essa questão trouxe reverberações para a exclusão politica que se instituiu no passado e para a sub-representação politica que constatamos no presente. Vale lembrar que, no século XIX, quando vigorava um regime monárquico, o direito de se candidatar era limitado a homens livres que possuíssem renda anual superior a 400 mil réis. Logo, como lembra José Murilo de Carvalho, a população negra escravizada, em hipótese alguma, era considerada em condições de dispor de direitos políticos. Na verdade, ela estava destituída até mesmo de direitos civis elementares à liberdade e à vida.
Com a Proclamação da República, apesar da escravidão já ter sido abolida, a marginalização politica da população negra foi reconfigurada, na medida em que era vetado o direito ao voto para analfabetos. Esse foi um mecanismo implícito para excluir a cidadania política de negros e pobres que não tinham condições econômicas para custear o seu processo de escolarização, visto que o acesso à educação pública e gratuita não era um direito universal nessa época. Portanto, o critério da renda, durante o Império, e o da alfabetização, durante boa parte do período republicano, foram artifícios instituídos para afastar a maioria da população da participação politica, ao tempo que mantinha a hegemonia da classe dominante, mesmo que, do ponto de vista demográfico, ela se constituísse como um quantitativo minoritário.
A partir da Constituição de 1988 foi garantido o direito ao voto para os analfabetos. A essa altura, o acesso à educação também foi tornado universal. Por isso, atualmente, vivemos o momento da nossa história em que mais brasileiros e brasileiras possuem direitos políticos, desfrutando da condição de votar e ser votado. Porém, isso não tem sido suficiente para alterar o status quo nos espaços de poder, onde prevalece uma maioria formada por homens brancos e filhos das elites.
Segundo levantamento feito pelo Congresso em foco, nas últimas eleições realizadas em 2018, muito embora negros e negras somem 55,7% da população brasileira, do total de candidaturas eleitas, somente 27% correspondem a mulheres e homens que se autodeclaram como pretos ou pardos, que juntos compõe a população negra, de acordo com a classificação adotada pelo IBGE.
Assim, não podemos compreender esse panorama de sub-representação política sem fazermos uma digressão histórica e localizarmos processos de longa duração em que teve lugar a construção de mecanismos ideológicos e políticos, cujo propósito era manter a população negra em uma condição de subalternidade. Além disso, cumpre reconhecer que, hoje, os partidos políticos, majoritariamente, refletem a estratificação que existe na sociedade brasileira. As instâncias do comando partidário e a indicação dos nomes para representar candidaturas, sobretudo, nas eleições estaduais e federais, são escolhidas dentre os quadros com formação universitária mais elevada e que, por conseguinte, provém de setores médios e mais abastados da população. É possível localizar exceções a esse processo nos partidos da esquerda socialista, os quais possuem militância orgânica com alguns seguimentos populares, mas ainda carecem de capilarização junto ao eleitorado brasileiro.
Em síntese, esse é uma parcela do quadro da sub-representação política no Brasil. Porém, não cabe apenas interpretá-lo, é necessário transformá-lo se desejamos a construção de uma sociedade com equidade. E, para tanto, além de eleger representantes políticos negras ou negros, é indispensável, também, verificar se as suas candidaturas e as agremiações partidárias que estão vinculados têm compromisso com a superação dos problemas herdados da incompleta abolição da escravatura realizada, em 1888, no Brasil.
Moisés Morais é Historiador e Professor. Mestre em História pela UNEB.
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