um conto por Roberto Minadeo
Recebo a fatura do cartão de crédito. Faço uma conferência. Gostaria de ser milionário e de poder dispensar essa chatice, deixando que a secretária e o contador pagassem tudo. Não disponho dos serviços de nenhum deles.
Tenho a satisfação de estar quase concluindo a conferência, e, de repente, vejo uma despesa da qual não me recordo. O primeiro impulso é falar com o pessoal do cartão, mas a preguiça é sempre uma força a ser considerada: seriam uns quinze minutos de conversa, no mínimo, navegando por inúmeras opções do call center, até conseguir ter o problema resolvido.
Trata-se de um gasto enorme em um restaurante há mais de um mês. Ao ver o nome da companhia na internet, surgem inúmeros dados inúteis: nome e CPF dos sócios, CNPJ e localização das várias lojas com o mesmo nome.
E daí? Como resolver o problema? Em outras palavras, para refrescar minha pobre memória, eu gostaria da fachada da loja visitada. A abundância cibernética consiste em uma oferta ilimitada de dados, suficiente para fazer com que qualquer um se perca em análises inúteis.
Chego à conclusão de que não há outro remédio: preciso deixar de almoçar amanhã, visitar esse belíssimo endereço, conferir se de fato estive lá e em um único dia gastei o equivalente a metade do que ganho em um suadíssimo mês de trabalho.
Ao chegar ao local, vejo que o restaurante é interessante, bacana e localizado em meio à riqueza. Basta olhar de longe para que eu me assegure de jamais ter adentrado em tal locação. Imagine a vergonha: entrar e perguntar alguma coisa, somente para saber se fui cliente desse recanto do paraíso na terra!
Tive uma ideia: conferir o cardápio. Se for predominantemente de massas, estou na dieta que apenas permite proteínas. Se for vegano, direi que se trata de uma proposta interessante, embora ainda não seja a minha escolha. Se for eclético e variado, direi preferir casas especializadas. Se for minimalista, direi estar morrendo de fome, e, portanto, atrás de um prato muito suculento.
Dito e feito. A casa é incrível. A decoração supera a de todo e qualquer restaurante que já vi nos melhores filmes. O cardápio é maravilhoso. Mas tudo isso é muito pouco perto de uma coisa indispensável: o cheiro. Até um nariz não cultivado como o meu consegue captar a existência de azeites, queijos, ervas finas e carnes das melhores procedências e preparados segundo as melhores receitas. Enfim, o paraíso abriu uma sucursal a apenas alguns quilômetros de minha residência. Certamente eu jamais fora a tal lugar antes.
Uma garçonete vem me servir. Que beleza incrível, que uniforme, que sorriso! E tudo isso vem embalado em uma grande simplicidade: não se trata daquela representação artificial, cheirando a modelo-de-capa-de-revista.
Ela pergunta se eu espero alguém. Gesticulo que estou sozinho. Vem outra pergunta, sobre se prefiro um ambiente interno ou o terraço, mais ventilado. Prefiro o ar livre. Sou conduzido à melhor mesa para duas pessoas. Uma das cadeiras é retirada.
Ao me sentar, deixo o meu olhar se perder em contemplação pelas demais mesas, e percebo o quão seleto é o público. É uma honra que eu possa estar elencado ao lado de tanta gente elegante. Um conjunto de moças maravilhosas comemora o aniversário de uma delas. Que mesa! Doze a quinze belas jovens saboreiam discretamente alguns pratos dos quais não consigo imaginar o conteúdo. Também alguns casais se encontram no recinto – com o clima que somente Cupido poderia lhes conferir.
Chega o cardápio. Que conjunto de acepipes! Basta folheá-lo para ter água na boca! Aliás, ocorre algo único em minha vida: começo a salivar de verdade ainda antes de escolher qualquer coisa! Gostaria de ser milionário para poder fazer as refeições diariamente neste recanto. Agora entendo o motivo de tantas pessoas se esforçarem tanto para serem ricas. Seria ainda mais maravilhoso poder vir aqui para o almoço e para o jantar!
Jamais tive a oportunidade de saborear alguma das iguarias expostas nesse cardápio dos sonhos, então peço a assistência da garçonete.
Quando chegam os pedidos não há adjetivos para descrever as delícias que se apresentam. Um tempo que representa uma fuga ao controle dos relógios aos quais os pobres mortais somos obrigatoriamente expostos: trata-se de uma necessária abstração a este mundo cruel. Saboreio o que de mais maravilhoso jamais degustei. Nem olho para a conta. Seria indigno de uma pessoa dotada de nobres sentimentos, ainda mais após ter recebido tanto. Apenas faço questão de conferir se a gorjeta à garçonete foi incluída.
Ao sair, sou outra pessoa. A felicidade exsuda de todos os poros.
O pobre Adriano pensou no que acima se descreveu. Coitado. Aos poucos foi tomado de paixão por aquele lugar mágico. Claro que uma ida mensal àquele incomparável local apenas representaria uma pequena parte de sua renda. Os economistas cunharam a expressão renda discricionária: é o que sobra, após o pagamento das despesas necessárias.
Adriano passou a alocar ali toda a sua renda discricionária. Jamais pensara que os sabores e encantos da mesa viessem a se tornar um desejo irrefreável. Uma ida ao mês já não o satisfazia. Passou a ir quinzenalmente.
A renda discricionária mal permitia uma ida mensal. O que faz um pobre profissional de classe média quando o cartão de crédito começa a cobrar? Os juros são altos, bastante altos, ameaçando toda a estabilidade financeira.
Adriano não tinha bens a vender: o que lhe dariam por um aparelho usado de TV ou por uma geladeira velha? Ficou sem crédito, porém jamais deixaria de ir àquele restaurante, pelo contrário, resolveu o dilema da maneira mais simples: ampliou a frequência. A cada refeição que fazia, já saía com vontade de retornar.
Não, definitivamente o Adriano jamais abandonaria aquele estilo de vida. Qual o problema? O que precisaria ser feito? Não dispunha de recursos para pagar o cartão de crédito? Um primeiro assaltozinho não é nada. Máscara, um carro rico à saída de uma loja qualquer, uma dama rica... Jamais pensou que seria tão fácil... Pagou toda a dívida e voltou a ter crédito.
Para evitar problemas e deter um “estoque de liquidez”, passou a ficar sempre preparado, máscara no bolso, pelas regiões das grã-finas. Fez outras operações. Que diabos! Qual o problema? Qual a lógica a explicar o motivo de os juros do cartão serem tão altos? Isso sim constitui um roubo; o que ele fazia era absolutamente inocente.
Escolhia pessoas ricas, e se apropriava de uma parte minúscula de seu patrimônio: o que levavam em espécie. Claro que em alguns casos o excesso de joias era tamanho que surgia uma enorme e irrefreável tentação adicional. Seu gesto era tão genuíno, que chegava a ser altruísta. Sim, elas ficavam contentes em não serem feridas nem agredidas, não se contentavam apenas em deixar uns trocados, e já iam se adiantando em tirarem as joias. Ademais, Adriano insistia em não querer levar documentos nem cartões. Sensível, não levava bolsas nem carteiras de marcas caras, por saber que representam um cartão de visitas dessas pessoas. Em outras palavras, podiam estar com a bolsa vazia, mas jamais poderiam perder a própria bolsa.
Ir àquele restaurante compensava todos os riscos. Na verdade, trabalhava para manter o saudável hábito. Todo o restante de sua pobre vida de burocrata se tornara um mero e dispensável acessório. A garçonete o julgava um descolado milionário, em trajes casuais, que aos poucos ia desbravando todo o cardápio do melhor restaurante da cidade, sem servir-se de vinhos caros. De poucas palavras, a conversa do Adriano era acessível e atraente.
Os olhares dela, o atendimento perfeito em seus menores gestos, enfim o conjunto da obra permitiu ao nosso assíduo cliente perceber que ela estava ficando afeiçoada a ele. Com um pequeno empurrão, ele poderia conquistá-la.
Nunca o Adriano refletiu tanto; afinal, uma coisa era a sua paixão pela mesa que o levara àqueles imperceptíveis deslizes e outra coisa bem diversa era associar-se a alguém que o queria com base em uma falsa identidade! Afinal, como iria ele namorar a inatingível e maravilhosa garçonete daquele restaurante sublime? Como tornar aquela sua companheira de tantos momentos inigualáveis à mesa alguém que viesse a compartilhar toda a sua pobre vida?
E depois? E a dura realidade? Como dizer a ela que não detinha milhões e que qualquer namoro ou noivado seria uma simples e pura união de duas pobres misérias? Teria ele a coragem suficiente para desfazer a imagem que criara junto a ela e junto ao nobre estabelecimento? E o que diria: vivi da rapina ou da caridade alheia nos últimos meses, agora nunca mais virei aqui, vamos começar a namorar? Esse pedido não parecia nada romântico ou prometedor para o início de um duradouro relacionamento.
Por mais que esmurrasse os seus sofridos neurônios, não conseguia trazer soluções ao enigma que criara e no qual se afundava cada vez mais!
Sonhava todos os dias em uma fortuna fácil, apegava-se à loteria. Tantos ganham milhões e não merecem. Ele merecia: essa fortuna viria não apenas consertar a sua vida, mas permitir que ele fundasse um lar, junto a uma jovem admirável. Tentou e tentou, a sorte não o favoreceu.
Para continuar apreciando os maravilhosos pratos e ter as conversas com a amada, ampliou a atividade clandestina. Os desfalques se fizeram crescentes.
Um belo dia teve o infortúnio de assaltar a mesma vítima pela segunda vez. Tal fato representou um acidente à coitada, que se viu privada naquele dia de uma soma considerável: era empresária e iria pagar todos os que trabalhavam em sua firma. Adriano agradeceu o descuido, pois representaria um suprimento de fundos suficiente para cinco ou seis meses em seu adorável restaurante.
Após essa bem-sucedida operação, pela primeira vez quis utilizar alguma das joias de seu crescente estoque, para presentear a amada. Oh, mundo cruel das cruéis coincidências! Oh, ironia das ironias!
Quis o destino que a joia escolhida ao acaso tivesse origem naquela mesma pobre empresária, por ele assaltada duas vezes! A sorte sobe pelas escadas, o azar sobe de elevador! Quis o mesmo cruel destino que o gesto de presentear a garçonete fosse presenciado pela vítima, que o reconheceria até mesmo diante das barbas do capeta em meio às mais ardentes chamas infernais! Quis ainda o cruel destino que a vítima estivesse naquele restaurante justamente acompanhada pelo namorado, que a consolava pelo assalto sofrido.
Ocorre que esse namorado era da Polícia Civil. Bastou um gesto da amada, e Adriano foi preso em flagrante. Ruiu a sua fama de milionário galante e descolado. A amada – que já o amava secretamente – gritou e chorou diante da confusão.
A vergonha foi enorme, nosso larápio encarou a pobre garçonete, descobrindo ali na mais corriqueira troca de olhares que era amado mais intensamente até do que amava. Desesperado, tentou fugir, o policial não poderia deixar isso acontecer e perder seu prestígio diante da amada empresária.
A garçonete se interpôs entre o policial e o amado. O gesto impediu a saída da bala. Na delegacia, ao ter notícia da dívida com a empresária, as poupanças da garçonete foram oferecidas entre lágrimas.
Emocionada, a empresária retirou a queixa.
Ao se ver alvo de toda essa genuína paixão, Adriano passou toda a vida tentando corresponder e ser digno do tanto que recebeu.
Um único dia presenciou dois casais que se uniram: o policial e a empresária, que apadrinharam a garçonete e Adriano. Tornaram-se amigos inseparáveis.
Adriano nunca mais pisou naquele restaurante, nobre lugar de trabalho da esposa.
Roberto Minadeo é Analista em C&T do CNPq. Publicou obras em Marketing e Estratégia. Lançou a antologia “Sonhos Fulgurantes” (Amazon, B088P8D8RK), o romance “Na Casa da Avó” (Amazon, B09G1168MG) e o drama “Duas Irmãs” (Amazon, B09SK38KNX).
Participa de antologias de diversas editoras. É membro da ANE – Associação Nacional de Escritores, criada em 1963. Recebeu segundo lugar, no Prêmio da Assoc. Itapemense de Letras, na Categoria Crônica, em 2022.
Seu e-mail: rminadeo@gmail.com
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