um conto por Roberto Minadeo
Veneza passava por décadas de crescimento; ao longo da História veio a contar com mais de cem Doges, que fixaram bons moldes republicanos no governo, ao aliarem as melhores tradições dos governantes anteriores com sábias inovações ao longo do tempo. Suas rotas comerciais dominavam o Mediterrâneo, trazendo especiarias e seda do Oriente à Europa e fazendo com que a sereníssima cidade-estado ampliasse as suas fronteiras e as suas riquezas. Apenas as caravelas descobririam novas rotas, minando esse fenomenal ciclo de bonança.
Cristina era jovem, bela e recém-casada com Pietro. Seu nariz perfeitamente talhado a destacava. Ambos descendiam de famílias ilustres e ricas. O casal, amigo do Doge reinante, obteve uma posição de representação junto ao Sacro Império Romano-Germânico, em Viena.
O casal teve três anos maravilhosos, entremeados a inúmeras recepções e encontros oficiais – perfeitos para que os pombinhos consolidassem seus laços. Entretanto, o Doge que os protegera sofreu um golpe e foi destituído. O casal perdeu o posto e, decepcionado, teve que retornar.
Enquanto avaliavam a possibilidade de assumirem algum dos negócios da família compareceram a um baile diante do novo Doge, apenas para evitarem qualquer mal-estar em função de seus laços com o governo anterior. Ela, esfuziante, dançou como nunca e encantou a todos, propiciando uma ocasião privilegiada de conversa do casal com o novo governante – que mal escondeu ter ficado cativado por ela, um perfeito exemplar da beleza contida em uma embalagem de morena baixinha com olhos castanho-claros, tão comuns entre o seu povo.
O Doge se impressionou especialmente com a sagacidade e a inteligência dela; e fez uma proposta: Pietro seria seu conselheiro privado. Com esse arranjo, o governante julgou, de forma perspicaz, que os problemas seriam discutidos a dois, sendo a ele trazida a preciosa opinião dela – que, compreendeu imediatamente o sagaz alcance da proposta. Enquanto isso, o seu marido, envaidecido, pensou que a proposta se devia apenas às suas próprias qualidades. A República ampliou o seu crescimento, aproximando-se de seu apogeu.
Durante esses anos maravilhosos, vieram os filhos do casal. Cristina estava feliz em contribuir a temas vitais para a sua pátria, além de garantir a estabilidade da família, com a vantagem de não precisar sair da própria casa.
Em algumas ocasiões, porém, o Doge gostaria de ter acesso às ideias de Cristina com maior agilidade: nem sempre Pietro compreendia sua pressa e às vezes também não discutia alguns temas com ela. Outra causa suprema de desgosto, mais difícil de ser admitida: o Doge estava cada vez mais apaixonado por ela, inventando desculpas para poder vê-la mais vezes, em vão. Tratava-se de uma paixão nascida da mais platônica das origens – a das ideias. O Doge e Cristina cresciam em sintonia, mesmo separados pela distância e pela existência dos respectivos cônjuges.
Dessa forma, se fez natural que um segundo conselheiro fosse nomeado, um experiente ex-embaixador. O governante fez de tudo para que ninguém percebesse a existência de tais assessores – inclusive por ser limitado e crescentemente dependente de seus preciosos auxiliares, Cristina-Pietro e o recém-escolhido.
O segundo conselheiro não teve dificuldades em aperceber-se das limitações de Pietro e logo adivinhou as motivações que teriam influenciado em sua escolha. O Doge, por sua vez, percebeu que seu novo assistente estava próximo de uma verdade explosiva, e teve que pressioná-lo, exigindo lealdade e o mais absoluto silêncio, em nome da República e da confiança nele depositada.
As coisas estavam nesse precário equilíbrio quando veio a Peste Negra, que levou sem a menor cerimônia um terço da população da Europa, de parte da Ásia e do norte da África. O Doge perdeu em uma única ocasião a sua esposa e o segundo conselheiro, ficando inconsolável.
Como era de se esperar, o governo passou por maus momentos, devido ao mais absoluto caos que se instaurou. A perda de pessoal na República foi fulminante. Houve famílias inteiras dizimadas pela doença e vilarejos totalmente riscados do mundo dos vivos. A evolução da situação era informada de forma tão lenta que apenas servia para ampliar sobremaneira a sensação de ingovernabilidade, trazendo a mais total e completa exasperação aos pobres encarregados dos negócios. O Doge enfrentou o pior momento de sua vida: às perdas pessoais se uniram os momentos de maior tensão e dificuldade de governar.
Como gostaria de ter Cristina ao seu lado, para poder dividir com ela as dificuldades de governar!
Quando Pietro, após passarem os piores momentos, voltou a visitar o Palácio regularmente, o Doge mal conseguia esconder que sua paixão por Cristina e o fato de estar viúvo representavam uma ocasião privilegiada de se livrar desse tonto e fútil conselheiro. Todavia, a mais remota existência de algum ato de violência contra o marido de Cristina, levaria a toda a República perceber que o marido saíra de cena devido à sua intervenção pessoal. Dessa forma, por total ironia do destino, tanto a vida de Cristina quanto e de Pietro se revestiam do status dos maiores interesses nacionais.
O Doge convocou diversas figuras de destaque para a escolha do sucessor do falecido conselheiro: homens de negócios e pessoas que haviam se destacado na defesa dos interesses da República – civis e militares. Evitou chamar novamente diplomatas aposentados, para evitar criar ciúmes junto a outros extratos da sociedade, e especialmente para que não surgisse o costume de que seus assessores tivessem que ser de tal origem.
Apesar das tentativas de fazer com que o processo seletivo fosse discreto, surgiram boatos, que ganharam peso em função da recente crise pela qual a República atravessara. A escolha recaiu sobre um banqueiro ilustre, dos mais renomados de toda a Europa, e cuja família era amiga de longa data tanto de Pietro quanto de Cristina. Esta, feliz pela escolha e pelo fato de ver que a sua família havia saído ileso dos ataques da peste, continuou a prestar os seus preciosos e ocultos conselhos à Sereníssima.
Um belo dia, o novo conselheiro descobriu papeis secretos do falecido conselheiro – o diplomata – que aludiam a Pietro como detentor da condição de mero leva-e-traz das ideias de Cristina ao Doge. Como banqueiro e assessor do Doge, o dever de guardar sigilo se tratava de algo habitual em sua vida, e absolutamente imperativo neste caso.
Todavia, quis o destino que Pietro ingressasse na sala no exato minuto em que a pasta havia sido descoberta. A reação do amigo em tentar disfarçar o assunto não escapou à perspicácia do “antigo conselheiro”, que passou a inquirir sobre o que se continha naqueles documentos. O banqueiro fez o que pôde, colocou tudo em sua valise, alegou uma desculpa bastante esfarrapada para se retirar e se foi.
Pietro estava longe de ser um gênio, todavia não seria difícil a qualquer um dar-se conta de que algo daqueles papeis se referia a si próprio. Seguiu o amigo e o abordou quando iria entrar em seu palácio. Foi direto ao ponto, perguntando pelo conteúdo daquela pasta, alegando a centenária amizade que unia ambas as famílias. O banqueiro disse que estava sendo criada uma tempestade em copo d’água. Convidou-o para entrar e acompanhar a família no jantar.
Beberam. Pietro conhecia o ponto fraco do amigo. Assim, entre vinhos e champanhes, obteve relatos incongruentes a respeito do que o ex-embaixador escrevera. Apesar de bêbado, o banqueiro ainda tentou tirar qualquer importância de todo o episódio, classificando-o de mero conjunto de boatos, causados pela inveja.
Pietro se perdeu pela curiosidade. Alegando a necessidade de ir à toalete, foi atrás da fatídica pasta, encontrando os documentos. Não queria trair seu amigo, perpetrando um furto, de modo que leu ali mesmo o que o ex-embaixador escrevera sobre si e Cristina.
Fora de si, conteve-se a custo, apenas o necessário para se despedir de seus anfitriões. Não quis ir a casa, percorreu as ruas a esmo, imaginando o pior: começou pela certeza de que Cristina seria cúmplice. Depois, sua febril imaginação traçou o quadro mais negro possível. Sim, claro que sua amada esposa não tivera outra opção senão aceitar os ataques do Doge. Dessa forma, os “conselhos” da esposa certamente teriam sido acompanhados das carícias da traição junto ao governante.
Pietro criou todo esse monstro interior de desconfiança de tudo e de todos pelo simples fato de não aceitar a mais elementar dedução encontrada nos documentos que acabara de ler; ou seja, as habilidades intelectuais da esposa superavam bastante as suas. A vaidade o cegou. Jamais ele poderia admitir uma coisa dessas. Não havia a menor possibilidade de dúvidas, o Doge estava buscando em Cristina substituir a falecida esposa. Pior, a traição certamente teria sido iniciada antes.
Uma noite nas ruas, algo que jamais fora visto na existência de alguém de uma ilustre família como a de Pietro, e que deixou Cristina e os filhos absolutamente transidos de medo e preocupação. Afinal, haviam presenciado a recente perda de tantos amigos e conhecidos pela mais terrível doença que os anais da história jamais haviam registrado. Ele não chegou, apenas encaminhou um aviso ao início do dia: estando perto de sua mansão, chamou de longe um dos criados, e rabiscou uma nota, dizendo estar bem, tendo sido atraído por graves e urgentes negócios. Completou dizendo que não o aguardassem ao longo de todo aquele dia.
Cristina perdeu a tranquilidade, pois tinha o suficiente discernimento para captar a impossibilidade de “negócios” que tivessem absorvido seu marido durante a noite, e pior, que o compelissem a continuar tratando deles durante o nascente dia. Preparou seu ânimo para o pior.
Indignado, Pietro foi tirar satisfações ao governante. Este, confuso e assustado, tentou acalmá-lo, atribuindo a causa dos incendiários escritos à inveja do ex-embaixador por seus sábios conselhos. Péssima abordagem, pois Pietro imaginou estar sendo vítima da tradicional ironia de alguém imbuído de autoridade para aplacar um reles servidor.
Ao vislumbrar que o Doge o tratava com a condescendente atitude de mãe que se dirige a um filho pequeno, seu ânimo azedou ao limite: Pietro explodiu e desafiou o governante máximo da República a um duelo – algo inusitado nos anais da história. O Doge tentou argumentar, dizendo que muito sangue já fora derramado de forma involuntária pela Peste, e que não seria razoável um conflito em função de bobagens imaginadas por um ex-embaixador, aliás, já falecido. Contudo, quanto mais o Doge tentou argumentar, mais enfurecido deixava Pietro.
O banqueiro percebeu logo cedo o que ocorrera. Ainda antes de tomar qualquer atitude, soube do fatídico evento que iria ocorrer. Sentiu-se um verme, causador de tudo. Afinal, o maldito documento que tantos problemas vinha provocando deveria ter sido imediatamente destruído, pelo simples fato de não ter a menor serventia após ter sido lido por ele. Como poderia perdoar-se de tal falta? Foi ao Doge e pediu a imediata cessação de seus serviços. Ato contínuo foi informar Cristina do que havia ocorrido, tentando prepará-la para o que viria a ocorrer ao longo das próximas horas.
Cristina não ficou nada satisfeita com o andar dos acontecimentos: ou perderia o marido ou o Doge. Claro que as chances de Pietro ganhar o duelo eram muito maiores – o que representava nada menos que entrar no olho do furacão, ela seria vista como a traidora causadora de tudo, como alguém que o Doge havia usado. Além de tudo, seu matrimônio correria risco, pois uma traição não costumava ser perdoada. Em qualquer dos casos, a sua situação e a de seus filhos enfrentaria considerável desprestígio.
Já ao final da manhã, veio o duelo. Pietro, mais jovem e destemido, era o franco favorito, dominando as casas de apostas à proporção de sete por um. O Doge, todavia, se via no dever de defender não apenas a própria honra, mas também a da República.
Como se esperava, Pietro estava completamente ensandecido, e começou a luta de forma por demais agressiva. O Doge se defendeu lutando quase parado e fazendo o oponente girar em torno de si; conseguiu logo causar um pequeno ferimento na perna do atacante. Este, mancando, continuou suas tentativas de definir o combate o quanto antes, sem perceber que em vários golpes defensivos, o Doge lhe impunha mais e mais chagas – pequenas ou ligeiramente mais consideráveis.
A estratégia de Pietro de tentar cansar o Doge, por considerá-lo idoso, não estava funcionando. Em pouco mais de dez minutos de combate, quase exausto, Pietro começou a cambalear, seus ataques não levavam mais risco algum. O Doge avaliou cautelosamente a situação: Pietro iria espalhar aos quatro ventos a falsidade de sua versão a respeito da traição da própria esposa – ou seja, havendo alguma chance, em nome da governabilidade, fazia-se irrestritamente imperativa a vitória total, ou seja, abater o ofensor. Este não tinha a defesa como um ponto forte e continuou cego, tentando obter uma rápida vitória total. Entretanto, veio a sucumbir ante um golpe decisivo do governante, que saiu ileso da luta.
Cristina vestiu luto por primeira vez. Viúva, rica e jovem, se preparou às inoportunas propostas que viria a receber. Alguns primos distantes foram os primeiros, imbuídos dos mais nobres deveres de manterem a honra e o patrimônio sob o manto da sagrada unidade familiar. Para sorte dela, o Doge se antecipou. Fez uma festa, chamando ao palácio os mais destacados nomes da República. Naturalmente, ela foi convidada. Diante de todos, afirmou ter sido Pietro o provocador do duelo, com as mais falsas acusações de traição – às quais gostaria de encerrar de forma definitiva. Dessa forma agora estavam livres para unirem os seus destinos.
O argumento crucial não foi dito: ela estaria ao seu lado, aconselhando-o em todos os momentos – o que se fazia necessário nesse delicado momento de reconstrução da Sereníssima.
O casamento foi a festa mais notável dos anais de Veneza, tendo sido fonte de inspiração para romancistas de toda a Europa. A Ponte dos Suspiros foi construída especialmente para a ocasião. O Doge não teve mais dificuldades em acessar as ideias de Cristina – que em muito contribuíram para a República ampliar mais e mais os seus domínios, antecedendo três décadas que a levaram ao seu apogeu.
Roberto Minadeo é Analista em C&T do CNPq.
Publicou obras em Marketing e Estratégia.
Lançou a antologia “Sonhos Fulgurantes” (Amazon, B088P8D8RK), o romance “Na Casa da Avó” (Amazon, B09G1168MG) e o drama “Duas Irmãs” (Amazon, B09SK38KNX).
Participa de antologias de diversas editoras. É membro da ANE – Associação Nacional de Escritores, criada em 1963. Recebeu segundo lugar, no Prêmio da Assoc. Itapemense de Letras, na Categoria Crônica, em 2022.
Seu e-mail: rminadeo@gmail.com
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